Em agosto de 2020, a EUROPOL, serviço europeu de polícia, publicou relevante relatório acerca do envolvimento de organizações criminosas no desporto, denominado “The involvement of organised crime groups in sports corruption”. Trata-se de estudo realizado por entidade internacional com vistas à comprovação de que o esporte, devido às altas quantias transacionadas, vem sendo utilizado para o cometimento de ilícitos por organizações criminosas ao redor do mundo.
Embora o referido relatório mereça leitura integral, destaca-se, no presente artigo, a lavagem de dinheiro relacionadas às apostas esportivas. “Lavagem de dinheiro”, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.613/98, é o mecanismo por meio do qual se camufla a “natureza, origem, localização disposição, movimentação ou propriedade de bens valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, com o escopo último de reinseri-los na economia formal com aparência de licitude”.
Em apertada síntese, o processo delitivo para cometimento da lavagem pode ser dividido em três etapas: ocultação/colocação, dissimulação e integração. Ou seja: afastar o valor (dinheiro, bem, ativo) de sua origem ilícita (ocultação/colocação), realizar transações para camuflar as fontes criminosas (dissimulação) e incorporá-lo no sistema formal com aparência de licitude (integração).
A lavagem de capitais pressupõe a prática de infração penal antecedente, da qual decorre o capital sujo a ser lavado, e é caracterizada, como exposto, por um conjunto de transações comerciais ou financeiras que são realizadas para dar aparência lícita a bens, recursos e valores de origem criminosa, visando reincorporá-los na economia (de maneira permanente ou transitória).
O mercado de apostas esportivas, por sua vez, movimenta vultuosas cifras de maneira célere, e não possui homogeneidade em sua regulamentação ao redor do mundo, tornando-se atraente para os esquemas de lavagem de capitais[6].
A lavagem de dinheiro por meio das apostas esportivas pode ser uma prática relativamente simples, na qual, por exemplo, pequenos montantes de origem criminosa são colocados, por meio físico, diretamente ao operador de apostas e são “transformadas” em capital lícito a partir de apostas legítimas.
Igualmente, pode tratar-se de esquema sofisticado e complexo, que envolva várias camadas de transações financeiras em grande escala, de forma transnacional e por meio de empresas offshore,registradas em países conhecidos como “paraísos fiscais”.
Existem várias maneiras de se utilizarem as apostas esportivas para a lavagem de dinheiro, face à subregulamentação e a ausência de fiscalização, que favorecem, por exemplo, o anonimato dos apostadores e permitem a existência de casas de apostas online ilegais.
A título de tipologia, a fim de melhor ilustrar, serão apresentadas nesta coluna algumas formas pelas quais as apostas esportivas podem ser utilizadas para o cometimento de lavagem de dinheiro. Veja-se, inicialmente, dois exemplos de como capital pode ser lavado em apostas realizadas por meio virtual:
(i) Uma conta pode ser aberta em um site de apostas esportivas, na qual são feitos depósitos de pequenos valores de origem ilícita. Após a realização da aposta, o valor oriundo do prêmio poderá ser transferido para outra conta à sua escolha, conferindo aparência lícita à quantia.
(ii) Os depósitos pulverizados são mantidos na conta no website sem que sejam feitas movimentações, em seguida, a conta é encerrada e o montante depositado é devolvido por meio de transferência para uma conta bancária de sua titularidade ou – a depender da (ausência de) regulamentação – para a conta bancária de um terceiro. Dessa forma, o capital ganhará aparência lícita.
Da mesma forma, a lavagem de dinheiro pode ser operacionalizada por meio de apostas realizadas por meio físico. Por exemplo, na hipótese em que o proprietário do capital de origem ilícita comparece a uma banca de apostas e, anonimamente, realiza um palpite em um resultado óbvio. Ao vencer a aposta feita, realiza o saque do montante e guarda consigo a prova de que o valor obtido é decorrente de prêmio de aposta esportiva realizada. Assim, caso lhe seja questionada a origem do valor, terá o “recibo” como forma de comprovação.
Ou, de maneira ainda mais simples, em conluio com terceiros, o pretenso lavador, “compra” recibos de bilhetes vencedores e perdedores, a fim de guardar consigo e comprovar, na hipótese de eventual investigação, a constância da atuação como apostador, bem como a suposta origem do dinheiro.
A subregulamentação permite, ainda, que organizações criminosas constituam as suas próprias casas de aposta (por meio virtual) visando estritamente possuir um esquema próprio de lavagem de dinheiro. Nesse caso, os supostos apostadores (membros da organização) criam as suas contas e efetuam diversos depósitos em pequenos valores. Ato contínuo, realizam apostas em resultados absurdos a fim de que a quantia seja perdida em favor do operador de aposta, em regra, sediado em jurisdições offshore.
Para a casa de aposta online e o seu proprietário, a quantia será registrada como receita bruta do jogo (eis que oriunda de apostas perdidas). Ademais, tais contas simuladas, em regra, estão “escondidas” no meio de contas de apostas legítimas, de usuários efetivamente reais, o que dificulta, ainda mais, que sejam identificadas.
Na mesma toada, um operador pode atuar de maneira direta como coautor na prática da lavagem de dinheiro, repassando com aparência lícita valores de origem ilícita (por exemplo, por meio de contratos simulados). Nessa hipótese, o valor de origem ilícita pode ser pulverizado em apostas ruins, a fim de que o dinheiro seja retido pela casa de apostas. A operadora, então, por meio de contratos falsos dissimula a contratação de prestação de serviços de empresas de fachada ligadas à organização criminosa. Assim, no pagamento da nota fiscal simulada, o valor é devolvido aos lavadores com aparência lícita.
Ademais, não se pode perder de vista que um indivíduo (ou uma organização criminosa) que age visando dar aparência lícita a capital de origem ilícita está disposto a perder dinheiro. Assim, muitas vezes, é o cliente ideal ao operador de apostas. Por essa razão, algumas casas optam por deliberadamente ignorar condutas suspeitas.
Frise-se, é a ausência de regulamentação que fortalece a existência de uma zona cinzenta, na qual inexistem normas que imponham dever de diligência aos operadores, os quais, por não possuírem dever de fiscalização e de comunicação de condutas suspeitas de lavagem de dinheiro, podem simplesmente optar fechar os olhos à situação.
E, além disso, a ausência de normas rigorosas de prevenção à lavagem de dinheiro em alguns países tidos como paraísos fiscais faz com que autoridades locais não investiguem profundamente a origem de tais montantes. Assim, organizações livremente utilizam o mercado de apostas para lavarem os valores oriundos de suas atividades criminosas.
Pois bem. Especificamente no se que se refere ao cenário nacional, embora a Lei nº 13.756/18 não tenha sido até a presente data regulamentada, desde muito antes de sua promulgação, sites de apostas esportivas sediados no estrangeiro oferecem os seus serviços ao mercado brasileiro. A maioria deles está justamente localizada em países considerados pela Receita Federal Brasileira como “paraísos fiscais”, por exemplo Curaçao e Gibraltar.
Outrossim, é importante ter em vista, ainda, que os apostadores brasileiros que recorrem a websites internacionais, sediados em países nos quais a atividade é legalizada, não incidem na conduta típica prevista no art. 50, § 2º da Lei das Contravenções penais[10]. Portanto, o capital fruto de apostas esportivas não tem origem ilícita para o apostador brasileiro usuário de tais websites.
O usuário brasileiro que deseja efetuar apostas em tais plataformas possui algumas opções para efetuar depósitos em suas contas em casas de apostas virtuais estrangeiras: a primeira, possuir um cartão de crédito internacional; a segunda, realizar uma transação bancária ordinária, como o pagamento de um boleto bancário ou efetuar um depósito, que tem como beneficiário final pessoa jurídica brasileira.
No entanto, face à ausência de regulamentação do mercado de apostas no Brasil, ou da existência de políticas expressas de prevenção à lavagem de capitais nessa seara, há pouca (ou talvez, quase nenhuma) fiscalização com relação à atuação de tais empresas.
É importante registrar que, face à iminência da publicação do decreto que regulamentará a Lei nº 13.756/18, o mercado vem se adaptando. Algumas entidades de prática e de administração do desporto vêm implementando políticas internas de governança e compliance a fim de evitarem eventual participação, ainda que indireta, em casos de lavagem de capitais, inclusive por meio de apostas esportivas. Assim, mitigando, riscos legais, judiciais e reputacionais.
Ademais, já há notícia da existência de fintech, sediada na Capital/SP, especializada em atuar na área de “arranjos de pagamento” para websites nos quais se operam apostas esportivas. Tal instituição possui registro junto ao Banco Central e, por essa razão, já implementou internamente rigorosos requisitos no cadastro e efetivos mecanismos de rastreamento da origem e do destino de valores, atendendo às políticas de “know-your-client”, demandadas às entidades registradas junto ao órgão governamental.
Há notícia, ainda, de que a instituição somente autoriza a realização de depósitos e pagamentos para o titular da conta. Ou seja, quando irregularidades são constadas, os valores são automaticamente devolvidos ao remetente ou bloqueados e mantidos em custódia até que se forneça uma conta bancária em que o beneficial owner e o usuário do website sejam a mesma pessoa.
Contudo, as referidas movimentações espontâneas são absolutas exceções à regra em um universo no qual milhões de reais são transacionados sem que haja normativa expressa ou, no mínimo, notícia de efetivo empenho em se checar a origem e a destinação de tais valores.
As lacunas existentes no mercado de apostas que possibilitam tal prática, a tipologia apresentada e a experiência internacional demonstram que é imprescindível que o decreto de regulamentação da Lei nº 13.756/2018 preveja relevantes e efetivos mecanismos de prevenção à lavagem de capitais.
Neste ponto, salienta-se que, na última minuta de decreto apresentada pelo Ministério da Economia, há a referência à necessidade de “adoção e implementação de política de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo” (art. 22, caput); de obrigatoriedade de comunicação de informações sobre apostadores ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (art. 22, § 1º); e o apontamento de que poderão ser impostas outras normas por órgãos voltados ao combate à lavagem de dinheiro (art. 22, § 2º).
Não obstante seja possível se aprimorar a minuta do decreto (também) neste tópico, urge a célere publicação da regulamentação. Afinal, eventuais aprimoramentos, poderão ser indicados em posterior regulamentação da Unidade de Inteligência Financeira – UIF e alguma cautela preventiva no tocante à lavagem de capitais é melhor do que a completa ausência vivenciada atualmente.
Mariana Chamelette
Advogada especializada em Direito Penal Econômico e Compliance. Coordenadora Regional – São Paulo e Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol Paulista.