A continuar a ampliação da gama de aplicações psiquiátricas potenciais, drogas psicodélicas correm o risco de ter sua imagem desacreditadas como um emplastro Brás Cubas, panaceia duvidosa. Agora até a compulsão por jogos de azar entra na mira da pesquisa de tratamentos psicodélicos experimentais.
O rol de terapias sob investigação não para de crescer: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, TOC, alguns transtornos do espectro autista, anorexia, dependência química… propõe-se que até males vistos como puramente fisiológicos, como enxaqueca e danos cerebrais em boxeadores, possam ser mitigados com alteradores de consciência.
Quem cacifa a utilização de um psicodélico contra a propensão compulsiva a jogar e apostar é a empresa canadense Awakn. Ela está recrutando participantes para um estudo no Reino Unido, sob direção de Celia Morgan, da Universidade de Exeter, que almeja esmiuçar o efeito da cetamina nos sistemas de recompensa atuantes nessa compulsão e no pensamento supersticioso que a sustenta.
A cetamina é um anestésico dissociativo raramente abordado na cobertura jornalística sobre o renascimento psicodélico (não aparece em meu livro “Psiconautas”, p. ex.). Droga legalizada de largo uso médico, faz sucesso também na cena noturna como “key” e vem sendo usada por psiquiatras para tratar depressão há pelo menos 15 anos, como injeção.
Mais recentemente, uma variante do composto chamada escetamina ganhou formulação nasal para emprego como antidepressivo. Uma vantagem dessas substâncias está no efeito mais curto, compatível com uso ambulatorial, em comparação com psicodélicos como ayahuasca e psilocibina, igualmente estudados para depressão.
Estima-se que só nos Estados Unidos haja 10 milhões de pessoas viciadas em jogo (2,5% da população). A Awakn está de olho em ampliar seu mercado terapêutico com outras formas de compulsão potencialmente tratáveis com cetamina, como dependência de álcool, contra a qual também planeja utilizar MDMA (base do ecstasy).
Abrindo o leque das várias formas de adição, incluindo por exemplo sexo, a parcela da população norte-americana afetada pode chegar a 27%. No mundo, a dependência química seria de 15-20%.
É um senhor mercado, e também um nicho de pesquisa regiamente financiado pelo governo dos EUA. Só a iniciativa HEAL (acrônimo em inglês de Ajudando a Acabar com Adição no Longo Prazo), da czarina da pesquisa sobre drogas Nora Volkow, destinou em três anos mais de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 8 bilhões, o triplo do orçamento do MCTI) para 500 projetos.
Volkow é criticada pelo neurocientista americano Carl Hart, de quem ele já foi próximo. Ele a acusa no livro “Drogas para Adultos” (Zahar) de fomentar uma histeria em torno do abuso de opioides nos EUA. De todo modo, em 2020, ocorreram 93 mil mortes por overdose naquele país (três quartos após uso de opioides), 29% a mais que no ano anterior.
Não deixa de ser curiosa a opção da Awakn de investigar cetamina e MDMA para adição. Há cinco décadas de experiência com um outro psicodélico derivado de plantas africanas, ibogaína, em tratamentos alternativos de dependência química, inclusive no Brasil, mas com a desvantagem de seu efeito tomar muitas horas e exigir monitoramento cardíaco.
Marcelo Leite
O colunista da Folha é jornalista e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Foi Nieman Fellow na Universidade Harvard e Knight-Wallace Fellow na Universidade de Michigan.