MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 23:33hs.
Artigo da Sputnik

Febre na Copa, apostas online movem bilhões no Brasil, mas dinheiro vai direto para o exterior

Liberadas no Brasil desde 2018, as apostas de quota fixa movimentam bilhões, mas carecem de uma legislação robusta. A Sputnik Brasil conversou com especialistas do ramo em reportagem especial sobre o tema. Entre os entrevistados, um integrante do gabinete de transição do governo Lula, que garante trabalhar para a questão dos jogos de azar avançar no próximo período.

A febre do bet

"Ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor". O bordão clássico do locutor Galvão Bueno não pôde ser usado na Copa do Mundo deste ano, vencida pelos argentinos, mas ganhou uma versão alternativa após a TV Globo autorizá-lo a adentrar no mundo publicitário.

A voz inconfundível da narração esportiva brasileira foi parar em uma propaganda de uma das muitas casas de apostas que hoje dominam a internet. No argumento da campanha publicitária, Galvão afirma que "o brasileiro já nasce sabendo torcer" e que por isso teria intimidade com o mundo das apostas.

Em tempos de Copa do Mundo, o universo dos bolões é algo que instiga o brasileiro, até mesmo o que está desacostumado a acompanhar partidas de futebol no dia a dia. Com ou sem dinheiro envolvido, um palpite certeiro em um jogo entre Gana e Coreia do Sul vira motivo de comemoração e euforia.

Nesse sedutor mundo das apostas, as loterias esportivas já são um fenômeno de longa data no Brasil, com diferentes modalidades de apostas legalizadas vinculadas à Caixa Econômica Federal.

Mas, desde 2018, a legislação brasileira passou a compreender as apostas de quota fixa como serviço público, em uma categoria similar à das lotéricas.

O diferencial dessa modalidade é o de deixar claro para o apostador o quanto ele pode ganhar de acordo com a cotação do resultado em que ele apostou. Essa cotação é conhecida como "odd".

Bilhões em jogo

Hoje, cerca de quatro anos depois da lei, é quase impossível navegar on-line sem esbarrar em pelo menos um anúncio de uma casa de apostas esportivas virtuais. Quase todas trazem o termo "bet" no nome para deixar logo claro do que se trata — tanto para a legislação quanto para os apaixonados por apostas. Diante de tanta propaganda, é natural um aumento na procura.

Projeções divulgadas pela Forbes em novembro indicavam que devem ser movimentados US$ 160 bilhões (R$ 858 bilhões) em apostas durante esta Copa do Mundo.

Esse alto valor é maior do que o produto interno bruto (PIB) de 11 países participantes do torneio, segundo dados do Banco Mundial e governos locais. Croácia e Marrocos, que chegaram até as semifinais do torneio, estão entre os que têm o PIB inferior ao montante esperado com as apostas.

Os croatas, que conquistaram o terceiro lugar da competição, têm um PIB estimado em US$ 67,84 bilhões (R$ 360 bilhões), enquanto os marroquinos apresentam um de US$ 132,73 bilhões (R$ 704 bilhões).

Senegal, que avançou de fase, mas caiu nas oitavas de final, também compõe a lista. Os demais — eliminados ainda na fase de grupos — são Equador, País de Gales, Gana, Costa Rica, Sérvia, Uruguai, Tunísia e Camarões.

Esses números dão apenas uma dimensão da amplitude de um mercado que tem crescido de forma galopante nos últimos anos. Segundo projeção feita pela consultoria Sports Value, os apostadores brasileiros movimentaram cerca de US$ 700 milhões (R$ 3,6 bilhões, na cotação atual) em 2021.

Amir Somoggi, diretor da Sports Value, disse em entrevista à Sputnik Brasil que essa projeção foi feita em cima de dados do mercado internacional de apostas. Como o setor no Brasil ainda não é regulado, não é possível monitorar o montante exato que gira no país.

Entre 2019 e 2021, esse mercado mundial de apostas saltou de US$ 77 bilhões (R$ 402 bilhões, na cotação atual) para US$ 131 bilhões (R$ 684,6 bilhões, na cotação atual). Amparado nessa projeção, Somoggi destaca que em poucos anos esse mercado deve chegar aos US$ 200 bilhões (R$ 1 trilhão).

Somoggi aponta que a pandemia de COVID-19 acabou por acelerar o mercado global de apostas e isso, sem dúvidas, impactou no Brasil. Outro fator que incidiu no país foi a liberação dos patrocínios das casas de apostas a clubes de futebol. "Mesmo que a sede seja no exterior, tem uma operação de marketing no Brasil", apontou.

"Quando o Brasil regular [as apostas de quota fixa], vai crescer muito a receita. [...] A gente vê no mundo um crescimento percentual de dois dígitos a cada ano. É natural que se mantenha assim, e no Brasil esses US$ 700 milhões podem chegar a US$ 1 bilhão e depois [...] ir para US$ 5 bi, US$ 5,5 bi, US$ 6 bi, US$ 7 bi... E existe uma questão de cultura nisso. Hoje a cultura da aposta é muito específica para quem está on-line. Quando virar uma coisa que nem a lotérica, vai atingir um público mais velho. Tem um potencial para alavancar muito os números."

Somoggi se diz contra as apostas, mas sublinha que elas já estão ocorrendo, regulamentadas ou não: "Eu sou contra apostas. Acho que não trazem nenhum benefício, são um entretenimento e geram um vício, que nem um cassino. O Brasil tem milhões de pessoas jogando no cassino on-line, e o governo não recolhe um único centavo. Então não faz sentido não regular".

"Se não regula e já está com esse baita volume, regulando o governo vai ganhar muito, tanto com imposto quanto com as concessões. Você tem dois tipos de ganho público. Primeiro é o imposto, mas tem também as concessões que você pode criar e arrecadar altíssimo", disse.

"Hoje o governo brasileiro nem vê a cor desse recurso que é apostado. Na nossa conta, nós estamos falando de bilhões de dólares futuros na conta do governo brasileiro, que ele pode usar para diversos fatores, inclusive para casos de vício", afirmou.

Por que não é feita a regulamentação das apostas on-line? O que diz a lei?

O avanço das casas de apostas no Brasil só pôde ocorrer em razão da aprovação de uma medida provisória (MP) apresentada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em 2018, que versava em primeiro lugar sobre a destinação de verbas de loterias para a segurança pública e para a cultura.

Apesar de não aparecer no texto inicial apresentado por Temer, o Congresso Nacional acabou aproveitando a tramitação da MP 846 para estabelecer a criação de uma nova modalidade lotérica: a aposta de quota fixa.

De acordo com a Lei 13.756/2018, ela "consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico".

Segundo o ex-árbitro e ex-deputado Evandro Rogério Roman, que presidiu a comissão que apreciou a MP 846, a inclusão da questão das apostas de quota fixa ocorreu com muita naturalidade.

"As apostas já existiam em todo o mundo. O que nós fizemos foi regularizar no Brasil. Os sites eram hospedados fora [e operavam no Brasil]. Conseguimos regularizar, e hoje essas casas de apostas patrocinam clubes, patrocinam o esporte amador", aponta.

A lei, no entanto, acabou não tendo uma regulamentação, o que deixa a atuação das casas de apostas com muitas brechas. Para Roman, esse é um ponto essencial para se avançar. "A lei atendeu bem à necessidade de momento. O que tem falhado é que não se tem feita a regulamentação. Esses 'bets' todos surgiram depois da lei, mas ainda estão em um mar revolto, à deriva."

Esse mar revolto se deve justamente à falta de regulação e às brechas legais que foram deixadas. Segundo a legislação de 2018, o Ministério da Economia tinha um prazo de dois anos para regulamentar o dispositivo, com possibilidade de adiamento por mais dois anos. Passados quatro anos, isso não foi feito.

"O governo atual demorou, mas, se não fizer logo, vai começar a dar problema. Espero que o próximo governo regularize. Bilhões por ano estão sendo perdidos", afirma. "A quem interessa não regulamentar?", questiona o ex-árbitro.

Ainda segundo a Lei 13.576, "a loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais". Essa concessão, no entanto, nunca ocorreu, o que coloca as casas de apostas virtuais em um limbo.

O deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), relator do marco legal dos jogos de azar (Projeto de Lei (PL) 442/91) e integrante do grupo técnico de Turismo do gabinete de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acredita que é preciso avançar com a regulamentação das apostas de quota fixa e acredita que o PL 442/91, caso aprovado, pode ajudar a resolver as questões que travam esse processo.

"A quota fixa ficou pendente na sua legislação de infrações administrativas, o que acaba por inviabilizar sua regulamentação. A lei prevê a exploração como serviço público, e, se não tiver como fiscalizar as atividades, as concessões podem ter práticas não comprometidas com um ecossistema equilibrado para esse setor", explicou.

Carreras destaca que os jogos on-line não estão previstos nessa lei e enxerga a permissão para a exploração dessa atividade como "precária": "A ausência de regulamentação cria três fatores para a sociedade considerar. O primeiro é que não existe qualquer mecanismo que defina o jogo responsável, o jogo ético, o que pode acarretar em diversos problemas, como lavagem de dinheiro, manipulação de resultados e até mesmo o não pagamento aos ganhadores".

"O segundo problema é de saúde pública; ao não identificarmos os jogadores, não temos como tratar os que sofrem com a chamada 'ludopatia'. E, por fim, deixamos de arrecadar recursos para a execução de diversas políticas públicas", afirma Carreras.

Questionado pela reportagem sobre a ausência dessa modalidade de apostas no texto aprovado na Câmara dos Deputados sobre o PL 442/91, Carreras explicou que partiu do entendimento de que os temas tratados são diferentes.

"Mantivemos o entendimento de que as apostas de quota fixa devem continuar como serviço público, como é o caso das loterias. Todas as outras modalidades [bingos, cassinos, jogo do bicho] nós aprovamos como serviços privados de interesse público, o que poderá aumentar o dinamismo do mercado e facilitar ao poder público sancionar eventuais desvios de conduta que escapem da definição de jogo responsável", disse.

Mesmo assim, o parlamentar aponta que o PL pode acelerar a regulamentação dos bets. "Aproveitamos a oportunidade de trabalhar um texto sobre jogos e incluímos nele as infrações administrativas. Caso o Senado aprove o texto que a Câmara aprovou, o Poder Executivo terá condições de efetivamente implementar as concessões de exploração da quota fixa".

Carreras ainda confirmou à Sputnik que trabalha para que o PL 442/91 seja priorizado pela transição: "Entendo que é de suma importância para o fomento do turismo no Brasil, primeiramente ao ampliar a forma de exploração turística por meio dos cassinos integrados de resorts e pela destinação específica, por meio da CIDE-Jogos [tributo incidente sobre a exploração dos jogos], de recursos para a Embratur [a agência brasileira de turismo]", disse.

O parlamentar projeta que o potencial do mercado de jogos no Brasil faria o país arrecadar cerca de R$ 20,4 bilhões. Esse tema, no entanto, gera controvérsias com o partido de Lula, o PT, que votou contra o PL 442/91 na Câmara dos Deputados. A legenda acredita que a liberação dos jogos de azar vai aumentar a concentração de renda no país, o que vai na contramão das bandeiras do novo governo.

O projeto também sofre resistência de outros setores, que enxergam que a liberação estimula o vício e facilita a prática de crimes. Em maio, foi criada no Senado Federal a Frente Parlamentar por um Brasil sem Jogos de Azar, com o objetivo de tentar barrar a proposta.

Fonte: Sputnik Brasil