MIÉ 27 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 22:34hs.
Maurício Corrêa da Veiga, advogado

Ética desportiva dos atletas, apostas e integridade no desporto

O advogado Maurício Corrêa da Veiga, presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB, defende em artigo publicado no Lei em Campo que o Brasil adote práticas que contribuam para a preservação dos princípios do esporte e a integridade esportiva. Para ele, “o desporto está vinculado a um código moral e aos valores de uma comunidade, tal qual ocorre na arte e na literatura. Os princípios éticos são convenções não positivadas que nos orientam o modo de agir”, afirma.

Já na década de 1960 alertava Serrano Neves que com o incentivo estatal para a prática generalizada do desporto, a ciência penal adquiriu novos rumos, razão pela qual os regulamentos desportivos, através da construção jurisprudencial gradual, passaram a complementar as regras escritas do direito, numa triunfal adaptação desse ao fato, e, portanto, à vida.

A internacionalização do desporto e o desenvolvimento das mídias provocaram o espetáculo da globalização tornando imprescindível a presença de mecanismos que sejam capazes de coibir a corrupção no desporto, com a finalidade primordial de se preservar a verdade desportiva, a integridade e a ética desportiva, quer no âmbito criminal quer na questão disciplinar.

O site Uol noticiou nesta semana um episódio que provoca profunda reflexão acerca da ética desportiva e os valores e princípios tão caros do desporto.

O sigilo bancário do atleta Diego Costa foi quebrado a pedido da Justiça Federal de Itabaiana. A suspeita é de que o jogador teria relações próximas com uma empresa de apostas acusada de crimes fiscais.

Sem fazer qualquer juízo de valor acerca da culpabilidade do atleta neste grave episódio, tendo em vista que as investigações iniciais, é preciso deixar claro que atletas não podem ter envolvimentos com casas de apostas.

O atleta deve se concentrar na sua atividade que é a prática desportiva e todos os desdobramentos e responsabilidades a ela inerentes, como treinos, concentrações, preleções e afins. O atleta em atividade sequer pode participar de sociedade anônima desportiva, conforme recente proibição contida na Lei nº 14.193/2021. Ou seja, o atleta com contrato de trabalho vigente não poderá ser integrante do conselho de administração, conselho fiscal ou diretoria da Sociedade Anônima do Futebol.

No livro Estudos de Direito Desportivo, tive a oportunidade de escrever em co-autoria com o amigo Luciano Andrade Pinheiro que os jogos de azar faziam parte do entretenimento dos romanos conforme demonstram descobertas arqueológicas.

O autor espanhol Javier Ramos demonstra que o mais famoso era o jogo de dados (tesserae), feitos de osso, metal ou marfim, lançados com copos para evitar fraudes e garantir a confiança dos participantes, que gastavam boa parte de seu dinheiro com essa prática e também como jogo de pedrinhas (tali) e o cara ou coroa (navia aut capita).

Esses passatempos estavam engajados na vida dos romanos fazendo com que houvesse uma perseguição aos jogadores, conhecidos pejorativamente como aleator. Fonte de calorosas discussões, muitas das vezes os jogos terminavam em confrontos corporais, conforme registro presente em afrescos de Pompeia.

De acordo com o mencionado autor ibérico as únicas atividades com apostas legais eram as corridas de bigas, o salto com vara, o lançamento de dardo, luta, salto em altura e a luta de gladiadores. Qualquer outra aposta era considerada nula, não obrigando o perdedor ao seu pagamento. A lei não punia o roubo a uma casa de apostas.

Os jogadores eram castigados como ladrões, porém, os proprietários de casas de jogos não eram punidos, apenas não poderiam cobrar judicialmente as dívidas de seus clientes.

O jogo de roleta teve sua origem no exército romano. Para passar o tempo os soldados utilizavam as rodas dos carros que eram marcadas com números ou objetos, ou até mesmo, os próprios escudos.

Nada obstante a proibição, grande parte da sociedade romana era adepta dos jogos, independentemente da classe social, incluindo os imperadores, em especial, Nero, Calígula e Cláudio.

As apostas esportivas também eram proibidas em solo americano. A Professional and Amateur Sports Protection Act (PASPA) não permitia apostas esportivas em solo americano. Essa Lei tornava efetiva a proibição ao impedir que o Estado americano autorizasse ou licenciasse o funcionamento de casas ou empresas de apostas esportivas. Ficava excetuada, com efeito de autorizada, a aposta esportiva já em funcionamento em cassinos, além de apostas corridas de animais reguladas.

Em maio do ano de 2018 a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou inconstitucional essa lei proibitiva por afrontar a emenda 10 da Constituição, que considera que tudo aquilo que a própria Constituição não define como poder legislativo do Estados Unidos enquanto União, pertence aos estados individualmente considerados. Nessa Linha, a PASPA é inconstitucional porque limita o poder dos estados, sem que tenha o Congresso sido autorizado pela Constituição para tanto.

Com o advento dessas autorizações de funcionamento, as ligas americanas de esporte começaram um movimento de lobby para que as novas legislações prevejam uma taxa a ser cobrada das casas e sites de apostas (1%) chamada de “integrity fee”, incidente sobre o total de dinheiro arrecadado com as apostas. O movimento está sendo capitaneado por duas das maiores ligas, a NBA (National Basketball Association) e a MLB (Major League Baseball). O dinheiro arrecadado com essa taxa seria para compensá-las pelos gastos que tem e terão com o monitoramento da relação entre as partidas e o volume de apostas. Esse controle é fundamental, dizem as ligas, para garantir a integridade do esporte.

Há empresas com atuação global que monitoram as casas e sites de aposta e alertam os organizadores de partidas e campeonatos quando o volume de dinheiro apostado em um determinado evento esportivo foge do padrão. São milhares de dados analisados para prevenir que um resultado seja combinado ou fraudado, gerando prejuízo para as casas de aposta e manchando a integridade do esporte.

No final do ano de 2018, foi publicada a Lei nº 13.756 que dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública, sobre a forma de arrecadação de apostas esportivas e a destinação dos tributos advindos dessa atividade para esse mesmo Fundo. A ligação, portanto, de uma Lei que trata de um fundo de segurança pública com aposta é a destinação de recursos arrecadados com a atividade que serão vinculados, nos percentuais definidos, à manutenção das políticas de segurança pública.

Atualmente as apostas esportivas vão muito além do resultado de uma partida de futebol ou do vencedor de uma disputa de tênis ou natação. As modalidades de apostas no esporte são diversificadas. No futebol, por exemplo, envolvem número de escanteios em uma partida, número de gols, placar correto, quem receberá o primeiro cartão amarelo, quem terminará o primeiro tempo em vantagem, dentre inúmeras outras. Não bastasse isso, em alguns sites, as apostas podem ser feitas no decorrer da partida, isto é, enquanto se assiste a um jogo é possível seguir apostando. Os adeptos dizem que a aposta torna o esporte ainda mais emocionante.

Conforme se extrai de tudo o que foi exposto, deve ficar claro que um atleta não pode ter nenhum tipo de associação com apostas esportivas, sob pena de existência de manifesto conflito de interesse e violação da integridade desportiva e o fair play.

É imperiosa a adoção de práticas que contribuam para a preservação dos princípios do desporto e a preservação da integridade desportiva. Com efeito, o desporto está vinculado a um código moral e aos valores de uma comunidade, tal qual ocorre na arte e na literatura. A ética no desporto transcende a mera observância das regras de cada modalidade desportiva, pois consiste na forma como aquelas são cumpridas e interpretadas. Os princípios éticos são convenções não positivadas que nos orientam o modo de agir.

Maurício Corrêa da Veiga
Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL); presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB; professor do Master Diritto e Sport da Universidade Sapienza de Roma; vice-presidente da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB Nacional; membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo; membro da Comissão de Altos Estudos do Contrato Especial de Trabalho Desportivo e da Justiça Desportiva da Federação Paulista de Futebol; advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil e na Ordem dos Advogados Portugueses; autor de 6 livros; sócio do Corrêa da Veiga Advogados. Escreve no Lei em Campo na coluna “Sem Olé na Lei”.

Fonte: Lei em Campo