Carlos Drummond de Andrade dizia: “ninguém é igual a ninguém, todo ser humano é um estranho ímpar”. Parafraseando o escritor e trazendo para o contexto do fantasy sport, a situação é a mesma: o fantasy não é igual a sorteio, a loteria ou a aposta esportiva. É uma modalidade verdadeiramente única, com as suas singularidades que a torna sem semelhantes, um “estranho ímpar”.
As confusões acontecem e são naturais, afinal, os jogos eletrônicos são uma realidade bem recente, que traz novos paradigmas e complexidades que nem todos tiveram a chance de compreender ainda. Importante destacar que o entendimento é um passo essencial para se formar uma opinião a respeito e que deve ser dado para a viabilidade adequada da regulamentação da atividade.
Àqueles que ainda têm dúvidas sobre o fantasy sport game, vou apresentá-lo! Estamos falando de uma competição on-line, em que um grupo de pessoas disputa entre si em uma liga ou competição específica. Cada competidor escala o seu time virtual de atletas profissionais, com possibilidade de mesclar jogadores de diferentes times, devendo, apenas, observar um teto de gastos previamente estabelecido pelo organizador.
Cada escalação gera o ganho ou a perda de pontos a partir de estatísticas apuradas em um jogo real, como gols, defesas, passes, entre outros. O competidor ganha ou perde pontos com base no desempenho estatístico dos jogadores em competições do mundo real. Se o jogador faz um gol, o competidor ganha cinco pontos a seu favor. Se o atleta profissional der um passe certo para o gol, o competidor marcará mais três pontos no ambiente virtual. Por outro lado, se o jogador real perder um pênalti, o competidor perderá quatro pontos, e se tomar um cartão amarelo, perderá outros dois pontos, e assim por diante. Os critérios e as pontuações atribuídas a cada ação são previamente definidos pela empresa organizadora da competição, sendo do conhecimento de todos os usuários antes do início do torneio.
Em nosso país, o fantasy se concentra no futebol, mas em outros mercados mais consolidados, como o norte-americano, há também o basquete, o futebol americano, o beisebol, o hóquei, o vôlei e o automobilismo.
Na categoria fantasy há duas modalidades mais conhecidas: a disputada por temporada – season long ou de tiro longo -, na qual os usuários competem entre si durante toda uma temporada esportiva, e a modalidade de fantasy diária (daily fantasy), de tiro curto realizada em uma semana ou um único dia de competição. Aqui no país, atualmente, o Rei do Pitaco é o principal representante dessa categoria.
Mas como diferenciar o fantasy das loterias? A Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), em seu artigo 50, proíbe no Brasil a realização dos chamados jogos de azar, que são aqueles cujo ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte, exceto quando exploradas pelo Poder Público, ou mediante sua autorização. O fantasy é uma atividade legal, justamente por não se caracterizar como um jogo de azar, mas sim, de habilidade, conforme exposto acima.
O fantasy se assemelha aos casos do xadrez, da sinuca, dos e-Sports e do poker: jogos em que os resultados são determinados pelo desempenho dos competidores. As premiações são distribuídas com base na performance de cada indivíduo. Ao passo que nos jogos de azar, as pessoas não têm qualquer ingerência sobre o resultado e podem ser premiadas, como na loteria. O artigo 40, parágrafo único, do Decreto-lei 6.259/1944, dispõe que “considera-se loteria toda operação, jogo ou aposta para a obtenção de um prêmio em dinheiro ou em bens de outra natureza, mediante colocação de bilhetes, listas, cupons, vales, papéis, manuscritos, sinais, símbolos, ou qualquer outro meio de distribuição dos números e designação dos jogadores ou apostadores”.
A definição, apesar de antiga, traz três importantes elementos para reflexão. O primeiro deles diz respeito ao fato de os fantasy sports serem jogos em que o resultado decorre majoritariamente da habilidade dos competidores. O segundo traço caracterizador é que a atividade típica de um fantasy não envolve a “colocação de bilhetes, listas, cupões, vales, papéis, manuscritos, sinais ou símbolos˜. Os jogadores se inscrevem em um programa ou aplicativo para participar de uma competição envolvendo times fictícios formados por atletas reais que são escalados pelos usuários. O terceiro – e último elemento – é que, tradicionalmente, essa categoria de jogos não se utiliza de “meio de distribuição de números” para um eventual sorteio.
Verdade seja dita, alguns fantasy incorporaram sorteios nas suas atividades. Sempre que isso acontecer, como ocorre com o modelo do Cartola FC, estar-se-á diante de um evento lotérico, que para ser operado requer prévia autorização do Ministério da Economia. O Regulamento de Operação do Cartola FC – diferentemente dos fantasy tradicionais – estabelece a concessão a cada um dos participantes de “números da sorte”, distribuídos de forma aleatória e equitativa, evidenciando sua natureza atípica de sorteio, no qual a álea é o principal fator para definir o sucesso ou o fracasso de cada jogador.
Esta discussão toda sobre o fantasy não reverbera apenas entre os apaixonados e entendidos por futebol. Ela chega para movimentar um mercado de alto potencial, porém ainda dormente. Buscamos, aqui, esclarecer alguns ruídos interpretativos sobre esta atividade para que ela possa dar um importante passo em direção à necessária regulamentação.
Enfim, o Estado precisa dedicar atenção a todos, mesmo quando estamos diante de um “estranho ímpar”, pois o fantasy, apesar de ainda incompreendido por muitos, já representa uma indústria bilionária no mundo e que aponta para o Brasil como um mercado emergente de elevado potencial financeiro.
Rafael Marchetti Marcondes
Chief legal officer do Rei do Pitaco, professor de Direito Esportivo e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Gestão Esportiva pelo ISDE/ FC Barcelona. Especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Advogado em São Paulo.