MIÉ 18 DE SEPTIEMBRE DE 2024 - 22:35hs.
Marcello Corrêa, advogado

Apostas esportivas: breves apontamentos sobre a Portaria 1.330/2023 do Ministério da Fazenda

Em análise exclusiva para o GMB sobre a Portaria 1.330 que trata da regulamentação das apostas esportivas no Brasil, o advogado Marcello Corrêa destaca a importância de o Governo sinalizar a intenção de pôr fim às operações não regulamentadas. Ele destaca que exigir que operadores tenham como objeto social a exploração da AQF é de difícil implementação.

Não vamos fazer suposições nesses breves apontamentos sobre as motivações do Ministério da Fazenda para publicar a Portaria Normativa 1.330 no último dia 26 de outubro e nem avançar em todos os temas que ela trata.

Com efeito, vamos comentar os dispositivos da publicação que entendemos merecer maior atenção daqueles que desejam operar o serviço lotérico de apostas de quota fixa (AQF) no âmbito da União nos próximos meses. 

O primeiro dispositivo é a abrangência do marco temporal indicado no art. 2º, a saber: “as condições e disposições gerais regulamentadas nesta Portaria se aplicam a todas as empresas que exploram comercialmente a modalidade lotérica de apostas de quota fixa no território nacional, inclusive anteriormente à outorga de que trata o art. 29 da Lei 13.756, de 2018” (grifo nosso). Tratando-se de serviço público de titularidade de ente federativo, a sua exploração é condicionada às normas do Direito Público e aqueles que estavam explorando o serviço na lacuna da lei não poderão, em tese, alegar um direito adquirido (vide art. 6º e parágrafos do Decreto-Lei n. 4657/42).

Mais uma vez o Ministério sinaliza que os dias das operações cinzentas estão chegando ao seu final. Em breve haverá apenas duas possibilidades: ou o operador possui uma licença operacional outorgada por um ente da federação ou ele está na ilegalidade. 

Agora vejamos outras as regras cruciais que devem estar na mira dos pretensos operadores de AQF da União Federal, inclusive tendo em vista à manifestação prévia de interesse. Nesse sentido, vale destacar o art. 6º da referida portaria:

“Art. 6º Somente poderá ser autorizada a explorar apostas de quota fixa a pessoa jurídica que atender aos requisitos e condições estabelecidos em regulamento específico, que conterá, no mínimo, as seguintes exigências:

I- possuir objeto social principal de exploração de apostas de quota fixa;

II- comprovar a sua regular constituição segundo as leis brasileiras, com sede e administração no país, observado o disposto no §3º do art. 5º desta Portaria;

III- comprovar a origem lícita dos recursos que compõem o capital social;

IV- demonstrar a idoneidade dos responsáveis legais, sócios, beneficiários finais e ocupantes de cargos estratégicos da empresa, conforme regulamento específico;

V- possuir plataforma de apostas esportivas que atenda aos requisitos técnicos e operacionais definidos em regulamento específico e que seja certificada por laboratório cuja capacidade tenha sido reconhecida pelo Ministério da Fazenda;

VI- possuir estrutura de governança corporativa compatível com a complexidade, especificidade e riscos do negócio;

VII- disponibilizar serviço de atendimento a apostadores, sediado no Brasil, com atendimento em língua portuguesa, operacionalizado por canal eletrônico e telefônico gratuitos, em regime de funcionamento de vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, apto a atender às reclamações, dúvidas e demais problemas relacionados às apostas;

VIII- realizar cadastro na plataforma digital de que trata o Decreto nº 8.573, de 19 de novembro de 2015;

IX- adotar mecanismos de integridade na realização das apostas de quota fixa, conforme regulamento específico;

X- integrar organismos nacionais ou internacionais de monitoramento de integridade esportiva;

XI- implementar política de prevenção à manipulação de resultados, à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, conforme regulamento específico;

XII- designar um responsável pelas seguintes áreas, vedado o acúmulo de funções:

a) contabilidade;

b) segurança de dados;

c) ouvidoria;

d) segurança operacional do sistema de apostas; e

e) integridade e compliance; e

XIII- cumprir outros requisitos e condições estabelecidos em lei e em regulamento específico” (os grifos são nossos).

O dispositivo legal acima reportado é muito claro. Mas fizemos questão de destacar algumas partes para pautar nossos comentários.

A primeira delas é exigir que o objeto social principal seja a exploração da AQF. Nos parece que poucas sociedades, mesmo aquelas que já exploram a AQF, estejam nesse enquadramento. Isso porque é comum que os objetos sociais estejam descritos em sintonia com a classificação nacional das atividades econômicas (CNAE) e na lista de tais atividades, não encontramos “exploração do serviço público de apostas de quota fixa”.

Quando muito, temos os códigos sobre atividades de exploração de jogos de azar e apostas (92.00-3) ou exploração de jogos eletrônicos recreativos (9329-8/04), por exemplo. Então nos parece que esta exigência deveria ser expressamente endereçada à Sociedade de Propósito Específico (SPE), esta que deverá ser estabelecida, previamente à outorga da autorização (art. 27, III da Portaria em comento).

E dizemos isso porque diante dos 30 dias de prazo para manifestação prévia de interesse mais o período até a efetiva publicação de um edital de seleção pública, as sociedades nacionais e estrangeiras deverão proceder com seus ajustes corporativo. E, como todos sabemos, realizar todos os procedimentos para alteração do objeto social e demais arranjos de governança exigidos costumam demandar um certo tempo. Em resumo, parece que o relógio está correndo.

E tendo em mira o exigido pela portaria, nos parece que a criação de uma subsidiária integral (ou não) seja o melhor caminho para estar em conformidade com os requisitos do art. 6º acima transcrito e atender, ao mesmo tempo, ao supracitado art. 27, III (compromisso de constituição de Sociedade de Propósito Específico – SPE).

Ainda neste tema e aproveitando a oportunidade, seria saudável que o Ministério da Fazenda, através do órgão competente, apresentasse uma classificação de atividade econômica específica para o setor, evitando-se, com efeito, eventuais debates entre os objetos sociais envolvendo as atividades voltadas para exploração do serviço público de loterias e as classificações apresentadas no cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ). Ou, de maneira muito clara, que o Ministério informasse aos interessados que todas as classificações hoje existentes serão aceitas, desde que relacionadas ao objeto social da interessada e o serviço público de loterias, tal como é feito hoje pela grande maioria daqueles que exploram as apostas esportivas e outras modalidades lotéricas (art. 14, §1º e art. 29 da Lei n. 13.756/18).

A segunda questão é a utilização da expressão “regulamento específico”. Ela está em várias partes do texto da portaria. Em resumo, o Ministério sinaliza que editará outras portarias ou vai estabelecer tais regras via edital. Então teremos mais alguns eventos futuros que demandarão atenção dos interessados. Contudo, a própria portaria já dá algumas orientações, a exemplo do contido no art. 13, Parágrafo Único. Vejamos:  

Art. 13. Para obtenção da autorização para exploração das apostas de quota fixa, os operadores devem desenvolver e implementar, na forma da lei e da regulamentação vigente, política, procedimentos e controles internos efetivos e consistentes com a natureza, a complexidade e os riscos das operações realizadas, que contemplem a identificação, avaliação, controle e monitoramento dos riscos de envolvimento em situações relacionadas à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa.

Parágrafo único. Para o cumprimento do disposto no caput serão exigidos, previamente à outorga da autorização, sem prejuízo de outras condições estabelecidas em regulamento específico:

I- política de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que inclua diretrizes sobre avaliação de riscos na subscrição de operações, na contratação de terceiros ou outras partes relacionadas, no desenvolvimento de produtos, nas negociações privadas e nas operações com ativos;

II- elaboração de critérios e implementação de procedimentos de identificação de clientes, beneficiários, beneficiários finais, funcionários, terceiros e outras partes relacionadas, e de manutenção de registros físicos e/ou eletrônicos referentes a produtos e procedimentos expostos ao risco de servirem à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo;

III- implementação de procedimentos de identificação, monitoramento, análise de risco e comunicação de operações que possam constituir-se em indícios de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo ou da proliferação de armas de destruição em massa, ou com eles relacionar-se; e

IV- elaboração e execução de programa contínuo de treinamento visando à disseminação de cultura e à qualificação, de acordo com as respectivas funções, dos funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados, especificamente para o cumprimento do disposto na Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 e demais normas e regulamentos referentes à prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa.

O terceiro ponto que gostaria de destacar nestes comentários diz respeito à estrutura de governança da sociedade que irá aplicar para obter a autorização. Novamente, a portaria em foco dá uma direção no art. 6º, VI e XII. Sendo assim, o contrato ou o estatuto social deverá fazer previsão da estrutura interna em conformidade com ela. Nessa linha, a sociedade interessada deverá contar com aqueles órgãos em nível estatutário e indicar, mesmo que em ata de assembleia geral, os nomes e qualificações daqueles que irão desempenhar tais funções elencadas no inciso XII.

Agora a determinação de “integrar organismos nacionais ou internacionais de monitoramento de integridade esportiva” é muito saudável, mas devemos perguntar que organismos são esses? Quem mede ou reconhece a credibilidade deles? Qual o critério objetivo que será utilizado para medir se o interessado está ou não em conformidade? Então ter esta regra como determinante para se obter a autorização, nos parece capaz de constranger o universo de pretendentes. E, particularmente, nos parece mais apropriado determinar um prazo após a obtenção da autorização para que as autorizadas fizessem tal integração.

Ainda neste tema e se fosse possível opinar junto ao Ministério da Fazenda, nos parece que os processos de certificação relacionados à integridade são bem mais eficazes. Todos sabemos que existem certificados de integridade em relação aos produtos, dispositivos e estruturas corporativas. Tais certificados são realizados por laboratórios renomados e que podem ser credenciados junto ao Ministério da Fazenda. Em última análise e do ponto de vista da integridade sistêmica, aquela exigência como pré-requisito para obtenção da autorização, além de limitadora é menos útil do que exigir certificações de integridade, repetimos.

E indo além e refletindo sobre a preocupação de todos com a integridade, pode haver a exigência contratual de que que não sejam captadas apostas sem a certificação adequada. Em outras palavras: bastaria determinar que o permissionário somente poderá operar depois de apresentar as devidas certificações dos produtos, dos dispositivos e da sua governança. Ou seja, depois que ele pagar a outorga fixa e obter a permissão, ele passa a ter o “relógio correndo contra ele” – quanto mais rápido ele estiver certificado, mais rápido começa ver o retorno do seu investimento.

Prosseguindo na leitura da portaria, temos o prazo de manifestação em até 30 dias do art. 26 combinado com os demais dispositivos até o art. 29. Vejamos:

Art. 26. As pessoas jurídicas interessadas na outorga de autorização para exploração comercial de apostas de quota fixa no território nacional poderão apresentar manifestação prévia de interesse ao Ministério da Fazenda, no prazo de até trinta dias, contado da publicação desta Portaria.

Art. 27. A manifestação prévia de interesse deverá ser encaminhada à Coordenação-Geral de Loterias do Ministério da Fazenda, pelo endereço eletrônico [email protected], acompanhada dos seguintes documentos:

I- declaração de manifestação prévia de interesse assinada pelo representante legal da empresa, na forma do Anexo I desta Portaria;

II- formulário devidamente preenchido e assinado pelo representante legal, na forma do Anexo II desta Portaria; e

III- contrato social, estatuto ou compromisso de constituição de Sociedade de Propósito Específico - SPE, ou no caso de empresa estrangeira, compromisso de constituição de sociedade empresária no Brasil, redigido em língua portuguesa ou acompanhado de tradução juramentada (grifo nosso).

Parágrafo único. Os documentos de que tratam os incisos I, II e III do caput poderão ser apresentados por intermédio de procurador com poderes específicos.

Art. 28. A apresentação da manifestação prévia de interesse de que tratam os arts. 28 e 29 desta Portaria não configura autorização prévia para exploração da loteria de apostas de quota fixa, nem vincula a empresa, que deverá atender, oportunamente, a todas as exigências constantes da Lei nº 13.756, de 2018, desta Portaria e das demais normas legais e regulamentares vigentes (grifo nosso).

Parágrafo único. A data de abertura do procedimento para apresentação de pedido de autorização para exploração comercial de apostas quota fixa em todo o território nacional constará de regulamento específico, a ser expedido pela área técnica competente do Ministério da Fazenda (grifo nosso).

Art. 29. As empresas que atenderem integralmente o disposto neste Capítulo terão prioridade na análise de seus pedidos de autorização para exploração comercial das apostas de quota fixa, quando da abertura do prazo para apresentação do requerimento.

De fácil compreensão, as sociedades interessadas que atenderem ao chamado da União Federal terão prioridade no processamento em sede de procedimento de seleção pública. Mas se porventura não estejam plenamente em conformidade com as exigências do Ministério, não haverá obrigação das partes em dar prosseguimento.

Trata-se de estratégia muito interessante do Ministério da Fazenda porque ao final daquele prazo, haverá uma quantificação dos interessados e de suas capacidades. Com efeito, podemos supor que as próximas regras que serão editadas levarão em consideração esse conjunto de manifestações de interesse.

E por fim, não podemos deixar de comentar que a edição de uma Portaria Normativa é muito interessante diante da sua flexibilidade. Nessa trilha, o Ministério da Fazenda poderá fazer correções de curso diante das respostas obtidas e das normas que surgirão com a conversão da Medida Provisória 1.182/2023 em lei e com o texto final do Projeto de Lei 3626/2023, ambos em tramitação no Congresso Nacional.

Alguns poderão dizer que uma portaria não traz segurança jurídica, mas com todo respeito, temos que colocar na balança a utilidade ou não de ter as regras desse serviço público detalhadas em lei. Os jogos, como entretenimento, são muito dinâmicos e podem nos surpreender com necessidades de ajustes aqui e ali ao longo do tempo. Já o processo legislativo é complexo e tem seu próprio tempo, com estamos presenciando com a tramitação da medida provisória e o projeto de lei supracitados, por exemplo.

Além disso, lei tratando de loterias, contratações públicas, proteção do consumidor e lavagem de dinheiro já existem – e são muitas. Precisamos realmente de mais leis? A estratégia da utilização de portarias para fazer aquela sintonia fina nos parece muito mais inteligente do ponto de vista regulatório.

De qualquer maneira, a direção foi apontada mais uma vez e cabe aos interessados iniciarem suas adequações o quanto antes, sobretudo para não correr o risco de não conseguirem obter as almejadas autorizações para exploração das apostas esportivas em âmbito nacional.

Marcello M. Corrêa
Especialista em relações governamentais, advogado e mestre em Ciência Política. 1º. vice-presidente da Comissão Especial de Esportes, Loterias e Entretenimento da OAB-RJ; Integrante da Comissão dos Jogos da OAB-DF; Consultor da Axis Veritas Consultoria; e ex-diretor Jurídico da Loteria do Estado do Rio de Janeiro.