DOM 22 DE DICIEMBRE DE 2024 - 01:02hs.
Fabiano Jantalia, advogado

Jogo responsável: desafios para casas de apostas no Brasil e lições da experiência internacional

O lançamento da Portaria 1.330, que dá as linhas gerais para exploração das apostas esportivas no Brasil, tem um capítulo dedicado ao jogo responsável. Em artigo exclusivo para o GMB, Fabiano Jantalia, sócio-fundador do Jantalia Advogados, analisa a importância da abordagem do tema. Para ele, “a concepção de uma política de jogo responsável é, antes de tudo, um poderoso instrumento de prevenção de riscos”.

Ao longo dos últimos anos, uma das grandes preocupações suscitadas em debates sobre a abertura do mercado de jogos e apostas no Brasil tem girado em torno dos efeitos negativos que essa atividade poderia ter sobre as pessoas e as famílias. Muito se tem falado, por exemplo, no risco de um engajamento ou envolvimento excessivo de grupos potencialmente vulneráveis, como os menores de idade, os idosos e as pessoas com transtornos de comportamento associados ao jogo.

Em 27 de outubro, o Ministério da Fazenda deu um importante passo no enfrentamento desse problema: na tão esperada Portaria Normativa nº 1.330, de 2023, que estabelece as condições gerais para exploração comercial da modalidade lotérica de aposta de quota fixa no Brasil, está prevista a exigência de que as casas de aposta criem uma política de “jogo responsável”.

Para aqueles que atuam nessa indústria, essa exigência soa natural e até básica, até porque está presente em vários países do mundo. Mas, para a grande maioria das pessoas, algumas dúvidas ainda persistem: afinal, o que é o tal “jogo responsável”? Como ele se manifesta na prática? O que se pode exigir das casas de apostas que pretendem atuar no Brasil?

Um bom ponto de partida para a compreensão do assunto é o próprio conceito proposto pela Portaria MF nº 1.330, de 2023: de acordo com o art. 14, o jogo responsável consiste no conjunto de “medidas, diretrizes e práticas a serem adotadas para prevenção ao transtorno do jogo compulsivo ou patológico, para prevenção e não indução ao endividamento e para proteção de pessoas vulneráveis, especialmente menores e idosos”.

Embora o conceito trazido pela portaria não destoe daquilo que se vê em outros países, é preciso destacar que a cultura e o sistema jurídicos do Brasil têm lá suas peculiaridades – a começar pelo sistema de proteção instituído pelo Código de Defesa do Consumidor.

Na prática, isso permite antever a necessidade de um cuidado bem maior das casas de apostas na formatação e detalhamento de suas políticas e procedimentos de jogo responsável no Brasil do que se verifica em outros países. Por isso, é preciso ir além do conceito normativo: deve-se buscar a essência e a lógica que orienta esse instituto, identificar os padrões internacionais de jogo responsável e adaptá-los à realidade brasileira.

A experiência internacional dessa indústria nos mostra que, conceitualmente, o “jogo responsável” é algo muito maior do que apenas um “jogo não problemático”. A lógica que orienta os legisladores, e até as entidades de autorregulação dos grandes centros mundiais, é a de que os jogos e apostas devem ser praticados por diversão e entretenimento, de forma consciente, e não por necessidade.

Sob essa ótica, qualquer fator que leve a pessoa a jogar ou apostar por ignorância (ex.: sem o conhecimento dos riscos de perda ou por achar que se trata de fonte de renda), por necessidade real (ex.: problema financeiro) ou necessidade psíquica (ex.: vício ou busca de status) precisa ser objeto de atenção e de medidas eficazes. O núcleo essencial de qualquer programa de jogo responsável, portanto, é a prevenção.

Diante disso, a indústria de jogos e apostas foi aos poucos consolidando alguns padrões de jogo responsável, inclusive com a colaboração de entidades privadas. Entre outros, veja-se, a título de exemplo, o programa “Safer Gambling”, desenvolvido pela a Gambling Commission, do Reino Unido, e os “Padrões de Jogo Responsável na Internet”, propostos pelo National Council on Problem Gambling, entidade estabelecida nos Estados Unidos.

Embora a sistemática de apresentação e a nomenclatura variem de acordo com a realidade jurídica de cada país e com os critérios adotados por cada órgão ou entidade, é possível agrupar esses padrões em cinco pilares: (i) política corporativa; (ii) publicidade e propaganda; (iii) conscientização e esclarecimento dos apostadores; (iv) mecanismos de proteção dos apostadores; e (v) assistência e encaminhamento dos apostadores.

O pilar “política corporativa” diz respeito à exigência de uma declaração de propósitos e de comprometimento da casa de apostas com o jogo responsável em si. Naturalmente, não basta o discurso: é preciso que haja a declinação pormenorizada de diretrizes, princípios, regras, procedimentos e, ainda, a indicação minimamente precisa da estrutura interna, dos recursos e dos treinamentos que serão implementados pela casa de apostas.

Já o pilar “publicidade e propaganda” diz respeito a todos os cuidados que deverão ser observados na divulgação dos serviços de aposta. Isso passa pela definição de regras e condições relativas não apenas a locais, canais e horários de veiculação das peças de comunicação, mas, também, pela linguagem a ser utilizada e pelos alertas que deverão acompanhar essa ação de divulgação.

Por sua vez, o pilar “conscientização e esclarecimento” compreende as medidas voltadas a assegurar que o apostador conheça a dinâmica do jogo ou aposta e seus riscos. Isso envolve, entre outras medidas, a produção de documentos e a criação de um serviço de atendimento que seja capaz de informar adequadamente sobre as regras de uso da plataforma ou aplicativo utilizados, os riscos de perda financeira dessa atividade.

Alternativas interessantes são a criação de testes de conhecimento sobre as regras e os riscos do jogo e da aposta, como também a criação de uma espécie de score ou “termômetro” por meio dos quais o próprio jogador possa avaliar o quanto seus hábitos podem indicar uma possível dependência de jogo.

Não menos importante, o pilar “mecanismos de proteção dos apostadores” envolve a exigência de concepção de uma série de funcionalidades destinadas a evitar a prática da aposta por aqueles legalmente impedidos (ex.: menores de idade) e pelas pessoas vulneráveis (ex.: os viciados em jogos, os superendividados e, eventualmente, os idosos), bem como os abusos e excessos do ato de apostar.

São mundialmente conhecidas as funcionalidades que podem ser configuradas pelos próprios apostadores, como os mecanismos de pausa e autoexclusão, bem como limitação de perdas, do número de apostas ou mesmo do tempo de utilização da plataforma eletrônica. Mas, cada vez mais, o cumprimento desse pilar vem demandando, também, uma postura mais ativa da casa de aposta. Não apenas porque alguns apostadores podem declarar identidade falsa, como também porque a experiência nos mostra que muitos deles não se veem como viciados ou, por mecanismos inconscientes, têm a falsa sensação de que sempre têm total controle sobre suas ações – e por isso acreditam que não precisam se autolimitar.

Ainda nesse pilar, é altamente recomendável a implementação de funcionalidades ex ante, como a prévia qualificação do apostador por meio de procedimentos de “conheça seu cliente” – o que passa necessariamente pela conferência da legitimidade das informações. No caso do Brasil, em que a cultura de apostas é relativamente recente, pode ser especialmente recomendável a aplicação questionários de suitability (para colher parâmetros mais objetivos sobre o perfil da pessoa e sua faixa de renda, por exemplo) e a criação de rotinas de inteligência artificial que, com base nessas informações, acionem travas preventivas automáticas, de modo a elevar o nível de proteção dos apostadores.

Por fim, o pilar de “assistência e encaminhamento dos apostadores” compreende os mecanismos por meio dos quais o apostador pode pedir e receber ajuda profissional qualificada. Algumas ferramentas clássicas são os serviços de assistência telefônica em tempo integral e, ainda, a indicação de nomes e dados de contato de centros especializados de pesquisa e tratamento de transtornos do jogo.

Essas, por certo, são algumas reflexões iniciais que requerem atenção pelas casas de apostas. Há muito mais a ser explorado e buscado. De todo modo, uma coisa é certa: o “jogo responsável” não pode e não deve ser visto pelas casas de aposta que pretendem atuar no Brasil como uma expressão de uma postura “politicamente correta”. Um mínimo de convivência com a práxis judicial nos mostra que, diante da jurisprudência reconhecidamente paternalista de nossos Tribunais, a concepção de uma política de jogo responsável é, antes de tudo, um poderoso instrumento de prevenção de riscos.

Fabiano Jantalia
Sócio-fundador do escritório Jantalia Advogados. Doutor e mestre em Direito (UnB). MBA em Finanças (FGV). Advogado especialista em Direito Econômico e Direito de Jogos.

Fonte: Exclusivo GMB