Meu pai apostava no jogo do bicho todos os dias. Aos sábados, enquanto caminhávamos para comprar o pão pela manhã, ele analisava meus sonhos com seriedade freudiana. Na falta de um animal, extraía um palpite de algum detalhe, dentre os que eu me esforçava para lembrar. Na dúvida, a aposta ia para o milhar de sua inscrição na OAB (7796), e um troco para o do recibo impresso no talão em que o apontador anotava o jogo.
Eu achava aquilo fascinante, ainda que, às 14 horas, quando pedalava ansioso para ver o resultado colado no poste em frente à padaria, quase sempre a realidade frustrasse a expectativa. Dava avestruz, ou cachorro, ou gato, ou burro, ou qualquer outro bicho que não aquele descoberto cientificamente durante a caminhada matinal. Quando ganhávamos, eu voltava orgulhoso com o pagamento do prêmio.
O ganho era sempre pouco, cabia no bolso. Nunca acertávamos o milhar na cabeça, que pagaria quatro mil vezes a aposta. Meu pai sempre “cercava” suas apostas pelos cinco milhares sorteados, “invertia” a ordem dos números e jogava no “grupo”. Os dez cruzeiros ficavam diluídos. Não era um jogo para ficar rico. Era um hábito, um passatempo, uma dose lúdica de esperança, um prazer no processo, não no resultado.
Essas reminiscências me vieram à cabeça quando li, semana passada, a notícia da investigação, pelo Ministério Público de Goiás, de um escândalo de proporções ainda não completamente mapeadas, envolvendo a manipulação de resultados de jogos de futebol no Brasil, por apostadores e jogadores de futebol. A versão é nova, mas o fato se repete de tempos em tempos, aqui e no exterior.
O evento fez ressurgir o clamor pela regulação estatal das apostas esportivas. De fato, como já escrevi neste espaço (Copa, apostas e moedas, 01/12/22), vivemos no Brasil um faz de conta. Bancar jogo ou aposta sem autorização legal – inclusive o jogo do bicho – continua em tese sendo ilícito. Mas a Lei 13.756 criou, em 2018, as “apostas de quotas fixas” em “eventos reais de temática esportiva”, para formalizar esse mercado por aqui.
Acontece que a regulamentação da lei até hoje não veio, mesmo depois de alterar-se o texto para favorecer os operadores das apostas. Como vemos nas camisas dos clubes e nos anúncios à beira dos campos, os “sites” de apostas são os principais financiadores do futebol brasileiro, mas seguem organizados fora do Brasil. Por aqui recebem as apostas e pagam os prêmios, mas não querem se estabelecer no país.
A princípio, as empresas que exploram as apostas deveriam ser as maiores interessadas em evitar fraudes como a constatada pelo Ministério Público na série B do campeonato brasileiro. Afinal de contas, em teoria, se os apostadores começarem a acreditar que os resultados são manipulados, podem deixar de apostar, ou ao menos restringir suas apostas a eventos menos sujeitos à manipulação.
É verdade que o caso de Goiás pode revelar uma certa despreocupação dos apostadores com a seriedade do jogo. A aposta fraudada envolvia o número de pênaltis cometidos no primeiro tempo de quaisquer três partidas entre as dez previstas para o dia. Um cenário em que as probabilidades esportivas eram muito menos importantes que o mero acaso, e um desenho que era um prato feito de incentivo à fraude.
Mas o que importa é que as empresas que bancam o jogo podem, se quiserem, restringir as modalidades de apostas que não envolvam elementos esportivos, limitando o acesso dos jogadores a um cardápio de eventos mais estrito, como o do resultado das partidas, da colocação dos clubes nos campeonatos ou dos artilheiros.
O que não faz sentido é esperar que uma regulamentação estatal cumpra esse papel limitador do tipo de aposta. Será impossível ao poder público antecipar e definir com clareza as hipóteses em que a manipulação ocorrerá. Para não falar no risco de os apostadores passarem a acreditar que as apostas são reguladas pelo governo, e, assim, protegidas contra manipulações.
Por isso, uma regulamentação estatal quanto à amplitude das apostas admitidas deveria, no máximo, exigir que as empresas não aceitem apostas que facilitem a manipulação de resultados e torná-las responsáveis caso seus procedimentos e regulamentos se revelem inapropriados e condescendentes. Com grande chance, em qualquer caso, de o mercado continuar funcionando à margem da fiscalização do Estado.
É que, como no jogo do bicho, as apostas esportivas são de pequeno valor e os prêmios são pagos imediatamente – por PIX, como antes eram feitos em dinheiro pelo próprio apontador. A reputação da banca vem exatamente da rapidez do pagamento e da ausência de calotes. Nem o banqueiro nem o apostador sentem falta da presença estatal.
Por outro lado, não é razoável esperar que o Estado brasileiro vá cruzar os braços diante de eventos como os apurados pelo Ministério Público de Goiás. Trata-se de crimes de estelionato e formação de quadrilha, envolvendo o esporte que constitui a paixão nacional.
Nesse cenário, tudo indica que a atuação estatal mais eficaz seria a de adotar medidas que aprimorem a detecção das fraudes e a efetividade de sua repressão. Para isso, em primeiro lugar, é necessário aperfeiçoar as sanções penais e esportivas a jogadores e dirigentes envolvidos na prática dos ilícitos, e agilizar a imposição daquelas penas, inibindo o cometimento dos crimes pelo aumento do risco de sua prática.
Contudo, dada a grande probabilidade de que os operadores de apostas continuem operando no exterior, é também preciso intensificar o intercâmbio internacional de informações pelos órgãos brasileiros de combate à lavagem de dinheiro, inclusive quanto à tecnologia e à investigação conjunta das fraudes ligadas a apostas esportivas.
Marcelo Trindade
Advogado e professor da PUC-RIO. Foi diretor e presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Fonte: Valor Investe