A corrupção espreita o futebol desde o primeiro apito. Ugo Giorgette a satiriza na primeira esquete de “Boleiros” (1998): um perna de pau atrapalha o plano do juiz interpretado por Otávio Augusto para forjar a vitória comprada. Hilário. A realidade configura-se menos caricata. Assim evidencia, por exemplo, a manipulação de três jogos da Série B investigada pelo Ministério Público de Goiás.
O caso reaquece o debate sobre a regularização da atividade no país. Deveria ter sido consumada até o fim do ano passado, conforme apontava a lei 13.756, de 2018, mas caducou diante de impasses políticos. O limbo regulatório enverniza o risco de golpes e uma evasão da grana movimentada pelas cerca de 500 operadoras da jogatina acessíveis aos brasileiros, porém não tributadas. O governo deixa de arrecadar até R$ 6 bilhões por ano, calcula a Fazenda.
A fraude recente soma-se a trambiques como o da Máfia da Loteria Esportiva, revelada pela revista Placar, em 1985; e da Máfia do Apito, adulteração de resultados orquestrada pelo árbitro Edilson Pereira no Brasileiro de 2005. Retratos de uma ameaça cuja extensão e cuja sofisticação avançam em compasso ao crescimento da trilionária indústria de apostas esportivas online. Só uma partida da nossa Série A move algo em torno R$ 100 milhões em apostas.
“Ao corroerem a credibilidade do mérito esportivo, esses crimes ameaçam não só o mercado. Ameaçam o próprio futebol”, alerta o professor da PUC-Rio Job Gomes, coordenador da pós em Direito Desportivo. Num papo por telefone, ele sugere um pacto por transparência, segurança jurídica, fiscalização. É categórico: “Não basta regulamentar”.
A suposta manipulação de jogos da Série B, investigada desde fevereiro pelo Ministério Público, reforça a necessidade da regulamentação de apostas eletrônicas como um dos mecanismos para conter esses golpes?
Regulamentar as apostas esportivas online é um dos passos para reduzir o risco de fraudes, pois proporciona segurança jurídica. Mas não basta regulamentar. É necessário um pacto de transparência e fiscalização, com avanços políticos, gerenciais e tecnológicos.
O que mudaria com a regulamentação?
Haveria ganhos de segurança jurídica e arrecadação tributária. Haveria clareza sobre os tipos de apostas ou de jogos, sobre os agentes e processos da operação, sobre os direitos e deveres dos envolvidos, sobre os dados circulantes, sobre a tributação da atividade.
Se a regulamentação é assim tão importante, por que patina há pelo menos três anos no Congresso?
Sabemos que a questão é complexa. Envolve aspectos políticos, morais, econômicos. Ao permitir as apostas digitais, com a lei 13.756, de 2018, o governo Temer determinou que fossem regulamentadas até o fim do ano passado. Mas o governo Bolsonaro deixou o prazo caducar, provavelmente por aspectos morais, para não desagradar, em ano eleitoral, a correntes evangélicas contrárias em ano eleitoral. Agora o governo Lula parece inclinado a regulamentar, e a proposta ganha força. O apelo tributário é preponderante.
Como assim?
Sem regulamentação, o Brasil deixa de arrecadar até R$ 6 bilhões anuais. Só a estrutura e a licença para cada casa de aposta operar renderiam cerca de R$ 25 milhões aos cofres públicos. A regulamentação faz parte de uma inevitável adequação a essa indústria já consolidada, em crescimento, inclusive entre os brasileiros.
Pois é, mesmo ainda não regulamentadas por aqui, as apostas eletrônicas se expandem no país...
Exato, fatores como a nossa ligação visceral com o futebol e o uso intenso de celular tornam o Brasil um terreno fértil para esse negócio. O mercado brasileiro é explorado por mais de 400 operadoras de apostas digitais. Com a regulamentação, teriam sede no país. E os bilhões movimentados seriam tributados. Além do mais, a segurança jurídica e a transparência reduziriam o risco de fraude, o que ameaça não só o mercado de apostas, mas a relação com o futebol profissional, seu papel sociocultural e simbólico na sociedade moderna.
Em que modelo jurídico e gerencial devemos nos inspirar para que a regulamentação contenha efetivamente os golpes e concilie interesses econômicos, culturais, sociais em torno do futebol?
O modelo inglês me parece a melhor inspiração, por compatibilizar aspectos jurídicos, culturais, econômicos, associativos. Na Inglaterra, as apostas eletrônicas articulam-se perfeitamente à cultura do futebol, com o envolvimento harmônico de clubes, federações, legisladores, gestores, torcedores. Já em Portugal, por exemplo, a regulamentação não teve a mesma eficiência. Isso mostra que a regulamentação precisa ser bem estruturada, bem ajustada a questões socioculturais e políticas, e acompanhada de aperfeiçoamentos gerenciais, fiscalizadores, tecnológicos. Este pacto deve agregar desde parlamentares até organizações esportivas.
Alexandre Carauta
Professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.
Fonte: VejaRi