Permitidas no Brasil desde 2018, as apostas esportivas se alastraram meteoricamente e viraram febre. As empresas operadoras estão nos estádios de futebol, nos uniformes dos clubes, nas publicidades de mídia e nos smartphones dos apostadores, que se dedicam devotamente às análises de prognósticos. Conhecedores do ramo ouvidos pela reportagem estimam que o público brasileiro tenha, atualmente, entre 500 e 1 mil sites de apostas esportivas à disposição, geralmente hospedados fora do país. Um mercado bilionário.
As interrogações que pairam sobre as apostas esportivas e deixam o setor no limbo — sem fiscalização, cobrança de imposto ou comprometimento legal com as melhores práticas — são decorrentes da falta de regulamentação. Em 2018, a atividade foi autorizada a partir da sua inclusão na Lei 13.756, que versa sobre a loteria e a destinação de seus recursos. A norma determinou as balizas gerais, mas os critérios de funcionamento teriam de ser estabelecidos a partir da regulamentação, etapa em que o poder público detalha o conjunto de regras para uma atividade. O prazo para o procedimento era de até quatro anos, mas o governo Jair Bolsonaro, pressionado pela bancada evangélica, deixou o assunto na gaveta.
Agora, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anuncia que a regulamentação será feita por meio de medida provisória do governo Luiz Inácio Lula da Silva. A intenção é dar andamento breve, e a União já projetou arrecadar cerca de R$ 6 bilhões ao ano. Contudo, diante de divergências de cálculo, a estimativa está em suspenso. A atividade é sensível, e o Palácio do Planalto se ancora nos argumentos da tributação, geração de emprego, fiscalização e punição para levar a intenção adiante.
"Não tem como fugir de uma realidade econômica que se apresentou. As empresas estão com muito dinheiro e isso alimenta a indústria do esporte, mas é preciso ter como pilar indispensável a proteção da integridade esportiva. Poderíamos discutir a proibição? Não tem mais como. Os sites podem estar em qualquer lugar do mundo, e as pessoas vão apostar. Precisamos regulamentar para o dinheiro ficar aqui, com investimento em fiscalização científica, projetos sociais e fomento do esporte no Brasil", diz Andrei Kampff, advogado especializado em Direito esportivo e compliance.
Com a velocidade do crescimento do negócio, em meio ao vazio de regras e fiscalização, saltaram os escândalos de manipulação de resultados, inicialmente em campeonatos de baixa relevância, mas, recentemente, as suspeitas chegaram à Série B do Campeonato Brasileiro de 2022.
Apesar das visões mais otimistas, a regulamentação terá de lidar com os potenciais danos causados pelo jogo patológico e por práticas criminosas. "Causam dependência, desagregam famílias, perda de patrimônio e empregos. Dão espaço para crimes como lavagem de dinheiro e manipulação de resultados. Além de violação da lei, tira o brilho, a magia dos esportes, em especial do futebol, que é a grande paixão nacional", opina o senador Eduardo Girão (Novo-CE).
Empresários do setor são favoráveis ao regramento
Os operadores de apostas esportivas e seus representantes associativos ouvidos pela reportagem são favoráveis à regulamentação. Em nota, o Ministério da Fazenda afirmou que está elaborando o texto da medida provisória com “normas de tributação, sanção, fiscalização da integridade esportiva e financeira de apostas no país, com regras claras” e “monitoramento de comportamentos suspeitos”.
“A regulamentação exigirá que as empresas de apostas sejam sediadas no Brasil — já que hoje encontram-se no Exterior —, aprimorando a fiscalização, a arrecadação e a interlocução com os agentes que atuam no setor. A medida pretende coibir que as apostas sejam utilizadas como meio de realização de lavagem de dinheiro”, informou a Fazenda.
Sem a prestação de contas ao Fisco, é tarefa complexa estimar quanto esse mercado está movimentando anualmente no Brasil. Alguns operadores e entidades dizem desconhecer o dado, enquanto outros mencionam cifras díspares, sempre na casa dos bilhões. A falta de solidez não permite reproduzir nenhuma estimativa.
Empresários de ponta consideram que muitos polos estão ganhando dinheiro com esse mercado — operadores, clubes de futebol, mídia e apostadores —, é justo, portanto, na avaliação deles, que o governo também retire a sua parte, como faz em qualquer atividade econômica.
"Por que (o governo) não poderia arrecadar? Todos temos licenças em outros países e temos de pagar taxas. O Brasil também deveria taxar. Assim, o dinheiro não deixaria o seu país. Não podemos esquecer a economia circulante. Regular a aposta esportiva vai trazer muitos empregos ao Brasil. É uma atividade bem paga. Existem outras taxas que podem ser cobradas. É uma oportunidade perdida", afirma o sueco Andreas Bardun, CEO global da KTO.
A avaliação dos empreendedores é de que a obrigação de ter sede física no Brasil e dados financeiros monitorados por Receita Federal e Banco Central irão afastar as empresas de má reputação. Bardun diz que os operadores têm “quantidade enorme de dados para compartilhar com órgãos reguladores e ajudar a detectar atividades suspeitas”. Esse é um ponto que mexe com a eventual lavagem de dinheiro e manipulação de resultados.
"Hoje, temos inteligência artificial que faz análise comportamental do usuário. Ela aponta quando há mudança de frequência e de valores apostados abruptamente. O operador tem interesse nisso porque não quer sofrer prejuízo com as fraudes. É possível alertar o órgão regulador da movimentação suspeita", afirma Rafael Marcondes, diretor da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte.
Sobre a lavagem, ele destaca que um caminho é a adoção da ferramenta “conheça o seu cliente”, que consiste na verificação da propriedade do e-mail e do CPF informados, além da checagem de eventual histórico de fraude. Para criminosos que busquem o uso de laranjas, há o reconhecimento de que a fiscalização fica mais difícil, mas não impossível: as normas devem prever que os depósitos e saques envolvidos com as apostas devem ser feitos sempre em conta bancária vinculada ao CPF do apostador. Se houver movimentação incompatível com a renda do indivíduo no volume de apostas, caberá à Receita Federal detectar e atuar.
Para o promotor Flávio Duarte, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a regulamentação traz elementos positivos. Ele denunciou esquema de manipulação de resultados em que apostadores ofereciam dinheiro a jogadores de defesa por derrotas do seu time com placares de pelo menos três gols e bônus por cometimento de pênaltis. Esse caso ocorreu em campeonato de categoria de base e, assim como na investigação da Série B nacional, as empresas de apostas seriam vítimas ao ter de pagar valores elevados por apostas improváveis de fraudadores que viriam a se confirmar.
"Acredito que a regulamentação vai possibilitar apuração mais detalhada. Com as empresas sediadas no Brasil, quem investiga poderá ter acesso a todas apostas e dados pelo CPF. Vai estreitar o rastreio e diligência contra fraudes", comenta Duarte.
Outra avaliação é de que a regulamentação tratará regras e protegerá inclusive o apostador, que vai ter seus direitos definidos em norma federal e saberá a quem recorrer em caso de conflito. Uma parcela de empresários entende que o regramento é o único caminho para blindar a paixão e o romantismo esportivo. Caso contrário, o cenário atual de descontrole pode levar ao crescente descrédito, desilusão e queda.
"Queremos preservar o esporte, principalmente o futebol. É patrimônio cultural brasileiro, e a gente vê ele em risco por falta de regra e de indicação sobre quem fiscaliza. Quanto mais fica solto, mais vemos escândalos. Isso afeta todo mundo: o clube, o atleta, o fã. É um mercado bilionário e o Brasil tem potencial de crescer. Estimulamos a regulamentação o mais breve possível", diz Marcondes.
Outro ponto sensível, admitido pelo setor, é o da patologia: apostadores que se viciam e passam a enfrentar dramas financeiros e pessoais. Lideranças do ramo defendem que a normatização traga limites de movimentação e a opção de autobloqueio. Uma vez que a trava for acionada pelo apostador, ele terá de cumprir a quarentena autoimposta, o que se estenderá, em teoria, a todos os sites regulamentados. Há divergência quanto à criação de uma lista em que o órgão regulador possa excluir das plataformas de forma unilateral o apostador por hábitos abusivos. Já no caso de atitude suspeita ou criminosa, há mais consenso quanto ao banimento.
"O comportamento patológico vai existir tanto no jogo legalizado e controlado quanto no ilegal e clandestino. A vantagem do jogo regulado é que você pode ter política pública para tratamento. O jogador patológico é o bêbado insuportável no final de noite que ninguém quer. Ele perdeu o controle da sua vida e tem de se tratar", afirma Magno José Santos de Sousa, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL).
Pontos de atenção
Uma das dúvidas é sobre a incidência da tributação. Há operadores defendendo que o imposto de renda recaia somente sobre os seus lucros, mas a legislação brasileira das loterias, na qual as apostas esportivas foram inseridas, cobra 30% sobre os prêmios acima de R$ 1,9 mil. Santos de Sousa, do IJL, entende que a atual norma determinaria o desconto do tributo nas bonificações pagas aos apostadores. Para Andreas Bardun, da KTO, isso poderá levar uma parcela a jogar em operadores do mercado clandestino, para fugir do imposto sobre a premiação.
"Nas apostas esportivas, você ganha algumas vezes e perde algumas vezes. Porém, normalmente as pessoas mais perdem do que ganham. O governo deveria taxar a parte que perde mais dinheiro do que ganha? O justo é fazer os operadores pagarem um percentual de seus lucros. É assim que acontece no Reino Unido, considerado o padrão ouro das licenças de apostas esportivas", avalia Bardun.
Outro alerta é feito por Andrei Kampff, especialista em direito esportivo: o Código de Ética da FIFA veda, no artigo 27, que as pessoas ligadas ao futebol se relacionem direta ou indiretamente com os operadores de apostas. Isso inclui jogadores, árbitros e dirigentes, mas o que se percebe cotidianamente é atletas protagonizando campanhas publicitárias das casas de apostas, a despeito do mandamento da entidade máxima do futebol.
"Os clubes podem ter a relação de marketing, mas precisam ter cuidado com isso. Vemos atletas participando de propagandas e isso é um problema. Obviamente pode trazer prejuízos à integridade do esporte", diz Kampff.
O senador Jorge Kajuru (PSB-GO) é favorável à regulamentação, apresentou projeto de lei com essa finalidade e entende que o mecanismo vai “evitar a falência de clubes de futebol”. Ele aponta, contudo, para a falta de conhecimento das operadoras sobre os clientes: "Tem criança de 10 anos pegando o cartão de crédito do pai e gastando em apostas. Vira uma loucura nas famílias".
Contrário às apostas esportivas, o senador Girão também apresentou um projeto de regulamentação da modalidade diante da constatação de que uma lei de 2018 determina isso. Ele redigiu proposta que considera mais dura, restringindo a veiculação de propaganda pelas operadoras. Ainda assim, demonstra pessimismo com o rumo das coisas.
"Toda a fiscalização e controle das apostas esportivas será pouco. O número de ludopatas só cresce no mundo, assim como a manipulação. O fato é que o Brasil não está preparado tecnologicamente para a fiscalização", avalia Girão.
Cassinos e bingos virtuais de fora
Alguns operadores de apostas esportivas têm, como atração secundária em suas plataformas virtuais, a opção de jogos como cassino e bingo virtual. A regulamentação terá de tratar sobre o assunto, já que a legislação que permitiu as apostas esportivas diz que a modalidade “consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva”.
Ou seja, por eventos reais, leia-se jogos de futebol, basquete e outros protagonizados por humanos. A interpretação de Santos de Sousa, do IJL, é de que os cassinos e bingos virtuais terão de ser abandonados pelos operadores regulamentados no Brasil. Fontes do governo federal comentam, sob anonimato, que a regulamentação será exclusivamente para apostas esportivas. Bingos e cassinos estão em discussão no Congresso e seguirão proibidos até eventual mudança legal.
Pelo lado das operadoras, apesar de indicativos contrários, há esperança de manter os jogos alternativos, igualmente geradores de receita.
Fonte: GZH