MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 13:40hs.
Yohann Sade, advogado CEO do escritório Sade & Gritz

A manipulação nas apostas esportivas: quem é a maior vítima?

Em artigo sobre manipulação de resultados, o advogado Yohann Sade, CEO do escritório Sade & Gritz aponta no Migalhas, a disseminação da prática de match-fixing há longos anos e destaca: “Cai por terra que as casas de apostas seriam as maiores beneficiárias deste esquema criminoso. A verdade é que são as grandes vítimas de todo este cenário”.

A Polícia Federal deflagra mais uma operação. Nominada de "Penalidade Máxima", uma alusão a um dos momentos mais importantes do futebol, visa investigar manipulações nos resultados de partidas de futebol, para viabilizar o êxito em apostas esportivas.

Capas de jornais, fotos, pessoas presas, apreensões. Um prato cheio para o interlocutor menos avisado entender que: "Eu sabia que essas casas de apostas eram todas compradas. É a falcatrua institucionalizada". Inclusive, tal operação já está em sua segunda fase.

Além disso, notícias de uma possível instauração de uma "CPI das apostas esportivas" estampam os principais jornais do país.

Ocorre que a memória, muitas vezes, trai o ser humano. É de fácil lembrança e percepção que muito antes do tsunami das casas de apostas, devidamente formalizadas, já existiam manipulações de resultados no Brasil.

Lembre-se, por exemplo, do famoso caso da Máfia do Apito, malas brancas e pretas, a Máfia da Loteria Esportiva, de 1982, noticiada pela revista Placar, dentre inúmeros outros exemplos.

Cai por terra, então, que as casas de apostas seriam as maiores beneficiárias deste esquema criminoso. A verdade é que, como se verificará, são as grandes vítimas de todo este cenário.

Referido texto não tem a pretensão de abordar todas as nuances deste tema, por completo, mas, apenas, trazer um pouco de claridade às abordagens que estão ocorrendo em toda a imprensa.

O histórico das apostas suspeitas no último ano

Sabe-se que para uma modalidade ser considerada esporte há um pressuposto inafastável da indefinição de um resultado pré-delimitado. Se há algum elemento de desequilíbrio desta equação, isso deixa de ser esporte.

É a não previsibilidade que faz com que o mercado esportivo tenha relevância internacional, movimentando uma máquina que envolve diversos players e stakeholders.

Obviamente que com o crescimento da distribuição dos conteúdos econômicos voltados ao esporte; o acesso a multiplataformas de qualquer lugar do mundo, com a realização de apostas em poucos segundos; o advento de uma nova possibilidade de ganho financeiro, em um mercado que movimenta bilhões de reais anualmente; surge aqueles que vem a possibilidade de ganho fácil e que querem subverter a lógica competitiva e de incerteza das competições para benefício próprio.

É o chamado match fixing, ou 'resultados combinados'.

A preservação da lógica desportiva e da lisura das apostas é um trabalho gigantesco de todos os players envolvidos nesta relação, porém, não simples. Imagine que, só no Brasil, existem quatro divisões principais da liga oficial da Confederação Brasileira de Futebol, fora todos os campeonatos estaduais, que ultrapassam centenas, ou milhares de partidas.

Como controlar que todos os agentes envolvidos nesta estrutura imensa não se 'corrompam' e acabem por auxiliar em uma manipulação evidente do mercado de apostas? Realmente é um trabalho hercúleo.

Sobre o tema, a International Betting Integrity Association (IBIA), que é uma associação global que tem como principal função pesquisar e fomentar a integridade das apostas esportivas regulares, publica, anualmente, seu report a respeito das apostas consideradas suspeitas.

Só no ano de 2022, o relatório expedido deu conta de 268 (duzentos e sessenta e oito) casos no mundo inteiro de apostas sob suspeita, número que representa um crescimento de 14% em relação ao ano anterior.

Para se ter uma ideia, o mesmo estudo delimitou, expressamente, que operadoras de apostas esportivas on-line, regulares, perdem algo próximo de US$25 milhões (em torno de R$131 milhões de reais) ao ano, com referidas manipulações cometidas.

Isso, por si só, já demonstra o quanto referido comportamento é nocivo para as casas de apostas sérias e reguladas, pois os prejuízos da referida conduta criminosa são milionários.

E isso tem uma razão de ser. A fixação das odds (chance de determinado evento acontecer, e o quanto o operador remunerará o apostador caso aquele evento ocorra) é calculada com a presunção de que aquele evento é, realmente, imprevisível.

Se, dentro deste contexto, a imprevisibilidade dá margem a um combinado - sem a ciência da casa de apostas - que altera a natureza do próprio esporte, existe a injeção de uma grande quantia de dinheiro em apostas manipuladas, o que altera a remuneração do apostador, e, aquele evento (agora manipulado) ocorrendo, afinal, faz com que a casa de apostas tenha que pagar ao apostador, criminoso, a remuneração pela 'aposta' bem-sucedida.

Ora, pensar isso em um caso específico não reflete a gravidade que atos criminosos sequenciais podem significar para a vida financeira e empresarial das casas de apostas.

Por este motivo, evitar, a todo custo, que referidas manipulações ocorram é prioridade das casas de apostas sérias e regulares, pelo menos daquelas que pudemos auxiliar e prestar consultoria.

É preciso que fique claro: as casas de apostas são vítimas deste comportamento ilícito, e, por isso, trabalham lado a lado com as autoridades para evitar que isso aumente ou ocorra em sequência.

O que dizia a minuta de decreto e, agora, a minuta da MP da regulamentação das apostas esportivas

Como é fartamente sabido, as apostas esportivas no Brasil, apesar de permitidas, desde 2018, ainda não foram regulamentadas até o presente momento.

Fato é que durante os quatro possíveis anos de regulamentação (2018-2022) houve a apresentação de uma minuta de proposta de decreto - SEI/ME - 23554434, que estabeleceria as normas regulamentadoras das apostas de quota fixa.

Nesta proposta ficou evidente a preocupação a respeito de mecanismos de controle para a fiscalização da manipulação de resultados e higidez das apostas esportivas, trazendo diversas obrigações ao operador para subsidiar o poder público com informações que permitam manter o mercado atuando de forma legal. Isso ficou consignado nos artigos 7º, 11º, 12º e 13º.

Fato é que, com a alteração do governo federal, houve nova proposição de regulamentação do tema, desta vez através de Medida Provisória. Houve a divulgação, pela imprensa, nos últimos dias da Minuta de Proposição da MP através do SEI/ME - 33914884.

Neste documento também está consignada a preocupação com a integridade das apostas esportivas (artigo 33-C e seus parágrafos) mencionando que o operador tem obrigação de adotar mecanismos de segurança e integridade, bem como que os eventos esportivos que são objetos das apostas devem contar com ações de mitigação da manipulação de resultados e de corrupção, em observação aos artigos 41-C, D e E da Lei 10.671/2003 (Estatuto de Defesa do Torcedor) e atos normativos do Ministério da Fazenda.

Verifica-se que as casas de apostas, sérias, regulares e licenciadas, terão diversas obrigações com a integridade das apostas de quota fixa e que, na verdade, estão ao lado do Poder Público e das entidades esportivas privadas na busca da fixação de um mercado legal.

Mas o leitor pode pensar: se a atividade ainda não foi regulamentada no Brasil e referidas imposições ocorrem no documento que não foi aprovado, as casas de apostas nada fazem atualmente para coibir referidas práticas.

A verdade é que não é isso que ocorre na prática. Atualmente, afora toda a regulação estrangeira da matéria (que tem implicações e obrigações legais, nesse sentido), as casas de apostas contam com empresas independentes que auxiliam na busca de apostas suspeitas.

Empresas independentes que auxiliam na fiscalização das apostas esportivas

A luta para que as apostas esportivas respeitem a lisura necessária e se evite a manipulação de resultados moveu o setor inteiro.

Começaram a ganhar notoriedade empresas que monitoram a integridade das apostas de quota fixa quase que de forma instantânea. Referidas empresas, junto com os operadores, são como sustentações do mercado inteiro, para que possa existir mais segurança e mais seriedade no cenário.

Exemplo atual disso, inclusive noticiado pela mídia, é o fato ocorrido no UFC Vegas 64, na qual a luta entre Darrick Minner e Shayilan Nuerdanbieke chamou a atenção pelo nocaute técnico de Minner no primeiro round.

Pouco tempo antes da luta, as casas de apostas viram um aumento exponencial nos valores investidos no lutador chinês, cujo evento principal seria uma vitória por nocaute ainda no primeiro round.

Tal fato chamou a atenção de uma destas empresas que, logo após o incidente, abriu uma investigação independente sobre o tema.

Na mesma hora, o presidente da referida empresa, mencionou:

"Nosso objetivo, como sempre, é notificar a indústria de qualquer atividade potencial nefasta, anormal ou suspeita o mais rápido possível, para que eles possam agir o mais rápido possível. Neste caso, esperamos que, enviando algumas horas antes do início da luta, possamos ter ajudado a evitar que algumas apostas mais suspeitas fossem aprovadas".

Verifica-se, portanto, que estas empresas auxiliam as casas de apostas, órgãos reguladores e entidades regulatórias privadas a evitar que haja manipulação nas apostas esportivas, pois o interesse é a legalidade do setor.

Inclusive uma destas empresas auxilia a FIFA desde 2017 a manter "(...) uma vasta gama de serviços de vigilância, treino e inteligência para reforçar ainda mais a integridade do futebol em todo o mundo."

Porém, mesmo com todos estes mecanismos de controle, o leitor pode perguntar: Como controlar que atletas ou pessoas envolvidas no esporte não manipulem os resultados dos esportes que eles mesmos estão envolvidos?

Jogadores de futebol, em atividade, podem ser patrocinados ou realizarem apostas esportivas?

Referido questionamento traz uma dificuldade grande de resposta. Isto porque, apesar de expressamente vedado que envolvidos nos esportes realizem apostas, tal vedação não parece atingir que estes sejam embaixadores de casas de apostas (o que, a nosso ver, pode significar senão algo ilícito, no mínimo estranho) 

Sobre o primeiro ponto, nos parece claro que todas as normativas sobre o tema, trazem, de forma clarividente, referida proibição, notadamente no que concerne ao futebol brasileiro.

Quando se analisa o Código de Ética da FIFA - Federação Internacional de Futebol, verifica-se que o artigo 276 proíbe, expressamente, que todos aqueles vinculados àquele código participem, direta ou indiretamente, de apostas, jogos de azar, loterias e atividades ou negócios similares relacionados com partidas ou competições de futebol e/ou quaisquer atividades relacionadas a futebol.

A proibição se estende, ainda, a eventuais interesses financeiros destas pessoas, direta ou indiretamente (por meio ou em conjunto com terceiros - e aqui entram, eventualmente, empresas do setor) em atividades, tais como apostas, jogos de azar, loterias ou eventos ou transações similares relacionadas com jogos e competições de futebol. Os interesses incluem a obtenção de qualquer vantagem possível para as próprias pessoas vinculadas àquele Código e/ou partes relacionadas.

Tal fato traduz, por exemplo, que um jogador pague para outra pessoa de sua confiança apostar.

Já a CBF - Confederação Brasileira de Futebol, também caminha no mesmo sentido, como se pode ver do seu Regulamento Geral das Competições - 20237. O artigo 65 reproduz o sentido das disposições da FIFA ao proibir 'atletas, técnicos, membros de comissão técnica, dirigentes e membros da equipe de arbitragem e todos aqueles que,direta ou indiretamente, possam exercer influência no resultado das partidas' de participarem, direta ou indiretamente, de apostas esportivas.

A lei Pelé traz também que o ordenamento jurídico brasileiro recebe os regulamentos internacionais do esporte, que vedam, expressamente, a participação de atletas em apostas esportivas.

Portanto, conforme se verifica, é claramente impossível que as figuras de apostador e esportista, ou pessoa envolvida com esporte, se misturem. A uma pois há uma efetiva presunção de parcialidade que envolveria a conduta do indivíduo envolvida; a duas porque, em não havendo a possibilidade real deste controle, a integridade do esporte estaria comprometida.

Nos parece que, de outro lado, existir a figura de um atleta famoso, em atividade, como embaixador de uma casa de apostas poderia sugerir uma lógica inversa de possível manipulação para o contratante, o que, como visto, apesar de não proibido expressamente, traz dúvidas a respeito da moralidade de referida conduta (pois, se estamos debatendo a integridade do esporte, o afastamento do jogador, ou envolvido no esporte de aposta, seja como apostador, seja como embaixador, é imperioso) - porém isto renderia um outro texto apartado.

A conclusão que se chega de tudo isto é que qualquer manipulação das apostas esportivas traz consigo diversas vítimas, sendo uma das principais a própria casa de apostas, diferente do que muitas pessoas e comentaristas de ocasião acabam por deixar de lado visando afetar todo o mercado multibilionário que é uma realidade mundial; e que, mesmo que a atividade ainda não tenha sido regulamentada, existem diversos players e normativas trabalhando, intensamente, para coibir referido comportamento.

Yohann Sade
Advogado especialista em Direito Administrativo e em Direito Tributário. É CEO do escritório de advocacia Sade & Gritz. Tem forte atuação para empresas, agentes políticos e no setor de gambling.

Fonte: Migalhas