MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 09:21hs.
Luciana Silveira, Chief Compliance Officer na Neoway

Área de governança, risco e conformidade precisa estar no coração das casas de apostas esportivas

Com a iminente regulação das apostas esportivas, cada vez se tornam mais frequentes as discussões de práticas adequadas à operação e fiscalização da atividade. Luciana Silveira, CCO da Neoway, aponta o GRC (governança corporativa, gestão de riscos e compliance) como o coração desse negócio, que gira bilhões de reais por ano. “Vejo a área de GRC como um apoio fundamental para implementar uma estrutura de controles aderente e promover a segurança e a confiança que a indústria requer”.

As apostas esportivas online são permitidas no Brasil desde 2018, quando a Lei 13.756/18 estabeleceu regras para seu funcionamento. A regulamentação da lei, porém, ainda não aconteceu. Na prática, apesar de estar legalizada, a atividade não passa por fiscalização.

Estima-se que no Brasil existem mais de 500 sites de apostas com sede no exterior e em paraísos fiscais. Ainda, segundo cálculos publicados pela imprensa, estamos falando de um mercado que movimenta até R$ 150 bilhões por ano. A Copa do Mundo de 2022 sozinha movimentou cerca de US$ 35 bilhões no mundo. O risco? Sem mecanismos de controle preventivo e detectivo, o setor está suscetível à prática de crimes financeiros, como a lavagem de dinheiro, fraude, e corrupção privada.

Mesmo não sendo um assunto novo, o tema atraiu a atenção do grande público este ano a reboque da Operação Penalidade Máxima, que revelou um escândalo de manipulação de resultados no futebol. Nesse esquema, um grupo aliciava jogadores para combinar apostas em lances comuns de partidas, como receber cartão amarelo ou cometer um pênalti. Certos da vitória, os fraudadores faziam apostas nas plataformas digitais e levavam seus prêmios. Quando o combinado não era cumprido, os jogadores passavam a ser cobrados pelos criminosos.

Embora o escândalo de manipulação de resultados tenha atraído os holofotes, essa é apenas a “ponta do iceberg”. Tenho acompanhado discussões sobre o tema e, para mim, está claro que se trata de uma questão complexa que envolve muito mais do que um tipo de fraude ou uma investigação isolada. O que está em jogo, além da adoção de mecanismos de controle e da taxação do setor, é a possibilidade de se valer dos mecanismos de governança corporativa, gestão de riscos e compliance como sustentabilidade e até mesmo subsistência do modelo de negócio.

Regulamentação e autorregulação

A regulamentação pretende definir parâmetros mínimos para que esse mercado seja um ambiente seguro e previsível para todos os envolvidos. Entre os principais pontos do Projeto de Lei 854/2023, de maio deste ano, as casas de apostas precisarão ser habilitadas e ter ao menos uma filial no país, além de custear R$ 30 milhões para ter permissão de cinco anos.

Elas também terão que se comprometer com práticas do jogo responsável, com a implementação de programas de prevenção a lavagem de dinheiro, e com uma propaganda consciente do produto. Mais recentemente, em maio, o Ministério da Fazenda também anunciou que apresentará uma medida provisória que, segundo a mídia, prevê a criação de uma secretaria encarregada de analisar o credenciamento das empresas aptas a funcionar por aqui, o volume de apostas e a arrecadação de impostos, com valores estimados entre R$ 3 e 6 bilhões já para 2024.

Também se discute o veto a apostas feitas por personagens do próprio universo do esporte, sejam eles jogadores, treinadores, comissão técnica, juízes ou quaisquer pessoas que tenham acesso a informações privilegiadas. Situação clara de um real conflito de interesses.

É importante deixar claro que, sendo uma prática legal desde 2018, as casas de apostas têm todo o direito de operar no Brasil. A lacuna está na falta de controle na esfera governamental, o que permite que as casas de apostas estejam sediadas em paraísos fiscais no exterior e se tornem, consequentemente, um meio mais atrativo para a prática de atividades ilegais.

Apesar disso, muitas dessas instituições se autorregulam, isto é, implementam regras e controles internos independente de exigência regulatória com a finalidade de prevenir fraudes e crimes financeiros. Afinal, quando isso acontece, são as próprias casas de apostas que arcam com o prejuízo, porque o prêmio pago se torna maior do que deveria caso não tivesse havido a manipulação.

Segundo especialistas no setor, as empresas mais sérias têm departamentos de compliance robustos e autônomos para fazer toda a verificação cadastral dos apostadores e acompanhar de perto o caminho do dinheiro. Algumas ações adotadas são: validação de CPFs e vinculação do documento à conta bancária de recebimento do prêmio; proibição de apostas por PEPs (pessoas politicamente expostas); monitoramento do volume de apostas e reporte em caso de ações suspeitas.

Diante da falta de regulamentação no Brasil, e a depender da origem da casa de apostas, o cumprimento desses processos é reportado junto a órgãos estrangeiros que oferecem licenças para a atuação dessas empresas e monitoram suas atividades.

O exemplo vem de fora

O Reino Unido é o maior mercado das apostas esportivas online. Pioneiro no tema, o país estruturou em 2005 o Gambling Act, lei que rege a atuação das empresas do setor e, desde então, vem promovendo o amadurecimento do mercado. Espanha e Alemanha seguiram os passos do vizinho e também regularam o setor em 2006 e 2012, respectivamente. Então, o que podemos aprender com eles?

O tema foi abordado recentemente em um painel no Congresso de Compliance da LEC sobre apostas esportivas. Segundo os participantes, enquanto se discute os termos da regulamentação, o Brasil tem a oportunidade de seguir o exemplo do exterior no combate às irregularidades nesta indústria, uma vez que a manipulação nos esportes desconhece fronteiras.

A cooperação entre vários atores com base em mecanismos de controles internacionais é uma estratégia vencedora utilizada na Europa contra crimes financeiros que movimentam 120 milhões de euros por ano. Em seu site, a União Europeia explica que os especialistas da Interpol trabalham com as autoridades policiais para identificar ligações entre partidas suspeitas e fraudadores a fim de identificar grupos de crimes organizados que atuam na região.

Como parte dessa ação coordenada, tomando a Inglaterra como exemplo, todas as pessoas relacionadas de alguma forma à Premier League (o maior campeonato nacional de futebol) são proibidas de fazer apostas no futebol em qualquer partida que ocorra no mundo. O veto se estende inclusive para além dos jogos. São proibidos lances sobre qualquer assunto relacionado ao tema, como, por exemplo, a transferência de jogadores e a contratação de técnicos, tudo isso a fim de evitar suspeitas do uso de informações privilegiadas.

As determinações são da Football Association (FA), entidade que controla o futebol por lá. Além disso, a FA orienta claramente qual deve ser a postura diante de uma possível situação de conflito e alerta para as punições a quem oferecer ou aceitar suborno para levar vantagem em apostas esportivas online.

Aqui no Brasil também é impossível falar sobre apostas esportivas sem falar do futebol, uma paixão nacional que movimenta milhões, em dinheiro e pessoas. Sem regras claras, sem uma cultura de integridade no esporte, sem a consciência por parte dos múltiplos agentes e sem a implementação de controles robustos nos processos internos das casas de apostas e das entidades esportivas, o modelo de negócio se torna vulnerável e afeta diretamente a imprevisibilidade dos resultados dos jogos.  

No âmbito nacional ainda há muito o que fazer. Em fevereiro deste ano foi criado o MIF (Movimento pela Integridade no Futebol), com o objetivo de fomentar boas práticas de compliance no esporte, estruturando um cenário de integridade dentro e fora das quatro linhas. Mas, infelizmente, a adesão ainda é baixa. Apenas quatro times da Série A aderiram ao movimento: Athletico Paranaense, Atlético Mineiro, Vasco e São Paulo, sendo este último o único a contar com o departamento de compliance no nível de diretoria.

Onde fica a área de GRC?

A governança corporativa (“G”) tem tudo a ver com este tema, porque apoia os objetivos estratégicos de uma organização ao implementar uma série de medidas que contribuirão para que a empresa siga no curso pretendido e gere o valor esperado de forma eficiente.

Estamos falando de alinhamento do quadro executivo com as diretrizes definidas pelo Conselho de Administração, de compreensão da responsabilidade nas tomadas de decisão em todos os níveis de hierarquia, e de ferramentas (políticas, processos e controles) adequadas ao negócio.

A gestão de riscos (“R”), por sua vez, identifica, trata, antecipa e monitora situações que podem prejudicar o atingimento dos objetivos corporativos, sejam eles estratégicos ou processuais. No mundo das bets, a matriz de riscos é particularmente desafiadora.

Entre os riscos mais comumente geridos no ambiente corporativo, como o risco financeiro, comercial, e segurança cibernética, está o risco de compliance (“C”). Por se tratar de um tema crítico, que envolve a prevenção, detecção e remediação de desvios de conduta que podem gerar a atribuição de responsabilização da empresa e impactos negativos à imagem corporativa, elevar o status de importância da gestão desse risco agrega valor ao produto principal da empresa.

Sobretudo no esporte que o elo entre o clube e o torcedor se apoia fortemente na reputação e na emoção, imagem é um bem de alto valor a ser protegido. O papel da área de GRC, portanto, contribui para aumentar a confiança no setor no setor de apostas e nos clubes esportivos.

Por esse motivo, não surpreende saber que, na ausência do peso da lei, as casas de apostas se autorregulam com seus próprios departamentos de compliance, fazendo o uso de soluções de dados para a checagem de antecedentes criminais, vínculos com PEPs e outras red flags que possam gerar suspeitas de eventual desvio de conduta. Afinal, ao mesmo tempo em que precisam proteger o negócio de fraudes que geram prejuízos operacionais, reputacionais e financeiros, as casas de apostas também devem transmitir confiança para o jogador que faz as apostas online.

A regulamentação pode sair do papel ainda este ano e o momento é decisivo para definir os rumos do setor de apostas esportivas no país. Estamos falando de um mercado no qual o Brasil é líder mundial, atingindo cerca de 3,2 bilhões de acessos em sites de apostas, e pelo 25% dos brasileiros que têm smartphones já colocaram dinheiro em aplicativos de apostas esportivas. O interesse do consumidor existe. O produto está validado e disponível no mercado.

O potencial de movimentação financeira é gigantesco. E o risco proporcionalmente impactante. Com esses ingredientes, vejo a área de GRC como um apoio fundamental para implementar uma estrutura de controles aderente às necessidades do negócio no curto, médio e longo prazo, bem como promover a segurança e a confiança que a indústria requer.

Luciana Silveira
Líder experiente na estruturação e gerenciamento de programas de compliance com histórico de trabalho no segmento de big data analytics, metalurgia e mineração, e escritórios de advocacia. Atualmente, Luciana é Chief Compliance Officer na Neoway.