Diversos temas chamam atenção e apresentam dúvidas aos juristas envolvendo economia digital e sua interseção com os mais variados ramos do direito. No final de 2022, publicamos na Revista do Conselho Nacional de Justiça análise sobre persecução penal, regulação e desafios práticos dos criptoativos.
Nos últimos tempos, vem tomando espaço na mídia (e na preocupação dos juristas) a questão das apostas online.
O jornal americano The Wall Street Journal evidenciou que o risco de prática de crimes financeiros cresce proporcionalmente às apostas online. A Europol fez uma pesquisa sobre o envolvimento do crime organizado nas apostas esportivas e nos principais achados aponta que: a tecnologia facilita as atividades; as organizações criminosas manipulam as apostas esportivas, consequentemente aumentando a lavagem de dinheiro; o futebol é o esporte mais visado e o tênis vem crescendo. Entendemos que o risco é potencializado quando passa para o ambiente virtual (pouco ou zero regulamentado).
No Brasil, o site Poder360 mostrou que apostas esportivas eletrônicas movimentam R$ 100 bilhões por ano. Segundo o jornal O Globo, a atividade cresce 11,5% a cada ano, podendo chegar a até US$ 127,3 bilhões em 2027.[5] De acordo com o PL 845/2023, US$ 35 bilhões em apostas esportivas foram movimentados durante a Copa do Mundo de 2022.
Assim, este breve artigo discorrerá sobre os desafios penais através do direito comparado, projetos de lei e legislação em vigor no Brasil.
Apostas por meio virtual são previstas na Lei 13.756/18. O art. 29 define a modalidade lotérica de apostas (chamada de quota fixa) como sendo um sistema relativo a eventos reais de temática esportiva, autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e explorada em ambiente concorrencial, estabelece que será um serviço público exclusivo da União, e será regulamentada pelo aludido ministério em até dois anos. O art. 30 trata da destinação do produto de arrecadação em meio físico ou virtual, art. 31 da incidência do imposto de renda e art. 32 taxa de fiscalização.
Notícias recentes mostram que o Ministério da Fazenda está evoluindo na elaboração de uma Medida Provisória para suprir a falta de regulamentação.
O art. 814 do Código Civil dispõe: “as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se quem perdeu é menor ou interdito.” No aspecto internacional, o Superior Tribunal de Justiça permitiu que um cassino cobrasse de um brasileiro dívidas de jogo de quando o devedor esteve no país, com fulcro no artigo 9º da LINDB (STJ –REsp 1.628.974-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j: 13/6/17, Terceira Turma, DJe 25/08/2017)
Pendente a discussão da aplicabilidade do referido acórdão para quando a aposta é feita por residente/domiciliado no Brasil em site do exterior que não tem presença no país, tendo em vista que jogos de azar são expressamente previstos como contravenção penal.
O DL 3.688/41 define, em seu artigo 50, como contravenção estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele”, multas de R$ 2.000 a R$ 200.000 para quem participa e define jogo de azar como sendo “o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; as apostas sobre qualquer outra competição esportiva”.
O pôquer não é considerado jogo de azar, e sim jogo da mente, em vista do foco na destreza intelectual, raciocínio lógico, controle emocional dos jogadores, dentre outros. Entretanto, a 13ª Câmara de Direito Público do TJSP manteve sentença monocrática autorizando a negação de alvará para estabelecimento de uma casa de pôquer (Apelação 1001861-28.2018.8.26.0081 Relatora Des. Isabel Cogan, j. 5/2/20, p. 6/2/20)
A Receita Federal já se manifestou pela incidência do IRPF em casos de recebimento de valores oriundos de apostas em sites do exterior, diante da inexistência de norma isentiva de tais rendimentos no Brasil, conforme SC Cosit 61/ 18.
Existem diversos projetos de lei sobre a regulamentação de apostas. O PL 442/91, aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022, tem mais de 30 anos e não menciona expressamente as apostas online. Pierpaolo Bottini destaca que “o projeto de lei aprovado tem um capítulo sobre prevenção a lavagem de dinheiro, que impõe uma série de obrigações aos operadores de jogos, como a implementação de procedimentos de avaliação de apostas, de riscos, e a comunicação ao Coaf de operações suspeitas e atípicas”.
Tal capítulo pode ser usado também para operadores de apostas online. O PL 600/2023 veda a oferta de jogos não expressamente autorizados pela legislação; exclusão do mercado empresas que aliciam atletas, árbitros e treinadores para o cometimento de fraudes; direcionamento de recursos para mitigar danos sociais e aprimorar a fiscalização e o controle e estipulação de limites às ações de publicidade, propaganda e patrocínio; o PL 845/2023, tem medidas para exploração das apostas como o pagamento de R$ 20 milhões ao Estado brasileiro para uma autorização de cinco anos e a obrigação da publicidade para o “Jogo Responsável”; o PL 2350/22 obriga a advertência em casas de apostas, pôquer, loterias, entre outros, nos quais os fatores aleatoriedade e sorte definem o resultado final, ainda que exista algum tipo de habilidade ou conhecimento por parte do jogador ou apostador.
A Austrália é um estudo de caso interessante de apostas online pois proíbe a oferta de cassinos online e apostas esportivas não licenciadas pelo governo desde 2001 através do Interactive Gambling Act. Em 2017, a legislação passou por uma reforma que também manda referências de diretores de empresas que não cumprem a legislação às autoridades australianas (o que pode prejudicá-los na obtenção de visto para entrada no país, por exemplo). Existe ainda uma lista daqueles que têm licença para operar na Austrália e orientações de como a indústria pode seguir as regras. O governo estima que desde as mudanças cerca de 180 operadoras de apostas online deixaram o mercado australiano. Essa experiência pode servir de modelo para as autoridades brasileiras que buscam regulamentar o setor.
A dificuldade na persecução penal com o mundo virtual e com questões transnacionais encontra desafios nas mais diversas esferas, seja da localização do apostador e do site de apostas, identificação de eventual crime de lavagem de dinheiro e sujeitos responsáveis, jurisdição competente para a persecução penal, local do produto da lavagem, dentre outras. A persecução daquele que usa a aposta em um cassino para lavagem de dinheiro se tornou mais complexa.
Assim, essencial a regulamentação da atividade – a experiência australiana serve de inspiração – que deve ser acompanhada da cooperação internacional e de articulação nacional entre os Poderes da República.
Salise Sanchotene
Doutora em Direito Público e Filosofia Jurídica pela Universidad Autónoma de Madri. Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Doris Canen
LLM em Direito Tributário Internacional pela King’s College London (Bolsista Chevening)