A aprovação da Lei 14.790/23 movimentou o mercado de apostas no Brasil, especialmente com a proximidade da abertura do mercado regulado. Mas muitas dúvidas têm surgido. Uma delas é se será permitida a aposta sobre eSports.
A Lei 14.790/23 trouxe dois tipos de apostas admitidas: (i) as de natureza esportiva, e (ii) as sobre jogos online.
As apostas sobre eSports não se enquadram na segunda categoria, dos jogos online, na medida em que de acordo com o artigo 2°, inciso VIII, esse tipo de jogo tem seu resultado determinado pela aleatoriedade, o que definitivamente não é o caso dos eSports, jogos em que a vitória ou a derrota vem da habilidade, estratégia e performance dos competidores.
Quanto às apostas esportivas, cabe uma análise mais detalhada.
O artigo 2°, inciso VII, trata das apostas esportivas, que são aquelas que recaem sobre eventos reais de temática esportiva. O próprio dispositivo se encarregou de esclarecer que tais eventos são “competições desportivas, torneios, jogos ou provas, individuais ou coletivos (…), cujo resultado é desconhecido no momento da aposta”.
Até aqui tudo bem. Nos eSports, o resultado dos jogos e competições é completamente desconhecido no momento da aposta.
Porém, nas suas alíneas “a” e “b”, o inciso VII traz duas condicionantes para que as apostas possam ocorrer:
a) que o evento seja promovido ou organizado de acordo com as regras estabelecidas pela organização nacional de administração do esporte, na forma prevista na Lei n° 14.597/23 (Lei Geral do Esporte), ou por suas organizações afiliadas; ou
b) por organizações de administração do esporte sediadas fora do país.
Mas o que vem a ser uma organização de administração do esporte? A resposta a essa questão está contida no artigo 16 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé).
Referido dispositivo esclarece que as organizações de administração do esporte são “pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo, [sendo] as competências definidas em seus estatutos ou contratos sociais”.
O dispositivo não define qual deve ser o objeto social dessas entidades, mas considerando o seu propósito, parece claro que deve abarcar atividades relacionadas à organização do esporte, tais como formatar e garantir a realização de eventos.
Logo, é possível haver apostas sobre eventos esportivos que sejam organizados e regulamentados por associações, federações e, inclusive, empresas, desde que tenham definido como sendo seu objeto social a elaboração, formatação ou coordenação de eventos esportivos.
Os eSports contam no Brasil e no mundo com organizações. Os jogos têm regras bem definidas, envolvem alto grau de competitividade entre seus participantes, existem competições periódicas, inclusive com elevadas premiações pagas aos seus vencedores.
As publishers – que são responsáveis pela publicação e divulgação desses games -, muitas vezes se encarregam dessas atribuições. Internacionalmente, existem entidades, como a ESL, que é uma organizadora e produtora de torneios de esportes eletrônicos de âmbito global, e a Federação Internacional de Esportes Eletrônicos, mais conhecida pelo acrônimo IESF, que é uma organização global de eSports com sede na Coreia do Sul, além da Esports Integrity Commission, ou simplesmente ESIC, uma comissão de integridade que também exerce funções próprias de uma organização de administração do esporte.
No Brasil, não é diferente. Uma publisher, como a Riot, coordena o Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL). A Garena, outra publisher, exerce função semelhante para a Liga Brasileira de Free Fire (LBFF); a Ubisoft, realiza o Rainbow Six (R6); a Eletronic Arts, por anos, fez o mesmo com o jogo de futebol FIFA. Há também no Brasil organizadores independentes (Liga NFA, de Free Fire, a Liga GG, que é uma organização de competições de League of Legends e Valorant, e por aí vai.
Algumas vezes, no mundo dos eSports se encontra, inclusive, as mesmas organizações do esporte que administram esportes tradicionais, como é o caso, no Brasil, da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que hoje administra o eBrasileirão e da Federação Paulista de Futebol (FPF), que já organizou competições de futebol via PlayStation.
De forma semelhante, no exterior, a Federação Internacional de Futebol (FIFA), organiza o eNations Cup. A Fórmula 1, organiza competições por meio do jogo licenciado (F1 23), e a liga norte americana de basquete, a NBA, coordena competições por meio do jogo NBA 2k.
Logo, os eSports contam com entidades que podem não ser exatamente iguais às organizações de administração de esportes tradicionais, pois a sua realidade e as suas necessidades são outras. Mas para os fins do disposto no artigo 2°, inciso VII, alínea “a”, da Lei 14.790/23, todas essas entidades citadas, se assemelham a organizações de administração do esporte.
O legislador, na parte final da alínea “a” do inciso VII do artigo 2° da Lei 14.790/23, estabelece apenas que se a entidade for brasileira, ela deverá seguir as diretrizes da Lei Geral do Esporte. A observância da Lei Geral do Esporte não se estende para as entidades internacionais.
No tocante à Lei Geral do Esporte, ao tratar das organizações de administração, ela estabelece em seu artigo 26, §2º, que a entidade deve cuidar da administração e da regulação do esporte, o que, via de regra, é feito por ligas, federações e publishers relacionadas aos eSports.
A Lei Geral do Esporte no artigo 94, parágrafo único, estabelece que a cessão ou a negociação de direitos econômicos dos atletas devem ser regidos pelos regulamentos próprios de cada organização de administração esportiva. Também relacionado ao tema, o artigo 95, §3º, prevê que as entidades devem fiscalizar o exercício da atividade de agente esportivo, bem como informar à Receita Federal do Brasil e ao Ministério da Fazenda todos os valores envolvidos e pagos na cessão e na transferência dos atletas. O Anexo da Lei Geral do Esporte ainda informa que a organização de administração do esporte ficará encarregada da divulgação de ranking de atletas.
Como se vê, as previsões contidas nos artigos 94 e 95 e no Anexo da Lei Geral do Esporte, dizem respeito a atribuições das organizações de administração do esporte relacionadas aos atletas. Ocorre que o artigo 16, §3o, da Lei Pelé, apenas faculta a tais entidades, a filiação de atletas, de modo que se isso não acontecer, salvo melhor juízo, elas ficam dispensadas de tais atribuições.
Desse modo, nenhuma das diretrizes trazidas pela Lei Geral do Esporte impede o reconhecimento dos eSports como esportes no âmbito nacional. Pelo contrário, as previsões contidas neste texto legislativo, associadas às previsões estabelecidas na Lei Pelé e na Lei 14.790/23, levam à conclusão de que na atual configuração do esporte eletrônico no Brasil e no mundo, estamos diante de organizações equiparáveis às administradoras de esportes tradicionais.
Alguns questionamentos podem persistir. O Ministério do Esporte reconhece os esportes eletrônicos como esporte?
A resposta é não, assim como não reconhece o futebol, o vôlei, o basquete ou a natação como esportes. O Ministério não declara ou atesta a natureza de uma atividade. O acolhimento de uma atividade como esporte se dá em decorrência do reconhecimento social. Logo a falta de reconhecimento formal pelo Ministério do Esporte de que os eSports não são esportes não é demérito para a modalidade, mas algo normal, que acontece com todas as outras modalidades esportivas, mesmo as mais tradicionais.
Pode-se questionar ainda se os eSports seriam efetivamente eventos esportivos sujeitos a apostas, diante da definição trazida pelo artigo 2º da Lei Geral do Esporte, que considera esporte “toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo a prática de atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento”.
O ponto a se observar é que a Lei Geral do Esporte, como o próprio nome diz, é geral, portanto, só se aplica a uma atividade, se sobre ela não houver norma específica. As apostas esportivas têm leis específicas (Lei 13.756/18 e Lei 14.790/23), de modo que sua aplicação se dará de forma subsidiária, quando a norma especial assim fizer referência ou for silente sobre determinado tema.
No caso, a Lei 14.790/23 traz diretrizes e define o que são os eventos esportivos sujeitos a apostas. Isso fica claro na leitura do artigo 2o, inciso VII, da Lei 14.790/23, que traz definição de evento real de temática esportiva. Portanto, prevalecem as diretrizes previstas nesta lei, não sendo preciso se socorrer, nesse ponto, à Lei Geral do Esporte.
O legislador, quando quis que as diretrizes fossem importadas da Lei Geral do Esporte, o fez claramente, como quando determinou que as organizações de administração do esporte nacionais observem o disposto sobre elas na Lei Geral do Esporte.
Retomando e finalizando nossa análise com a pergunta feita inicialmente no título do artigo: vale apostar nos eSports? A resposta é sim. É preciso, obviamente, analisar caso a caso para se entender se o jogo está efetivamente vinculado a uma entidade que se qualifica como organização de administração do esporte. Mas a definição, como indicamos, é ampla e, no geral, se amolda à realidade do esporte eletrônico, suas ligas, federações e publishers, estejam elas no Brasil ou no exterior.
Rafael Marchetti Marcondes
Chief Legal Officer no Rei do Pitaco, presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS), diretor jurídico do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) e diretor de relações governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte (ABRADIE)