LUN 25 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 21:38hs.
Marcelo Zenkner, advogado na TozziniFreire

A nova lei brasileira de integridade nas apostas esportivas

Começam a surgir as primeiras reflexões sobre a sanção presidencial da Lei 14790 e um dos temas que desperta atenção é a integridade esportiva. Em artigo de análise sobre o assunto, Marcelo Zenkner, advogado na TozziniFreire, aponta os avanços na regulamentação e destaca que o combate ao match-fixing, ética, KYC e jogo responsável serão fundamentais para a consolidação do segmento no Brasil.

Foi publicada, no último dia 30 de dezembro de 2023, a Lei Federal nº 14.790, a qual estabelece diretrizes e regras para a exploração da loteria de apostas de quota fixa, regulamentando, assim, a atividade das empresas de “betting” no Brasil. A nova lei tributa empresas e apostadores, define regras para exploração do serviço e, além disso, determina a partilha da arrecadação.

Trata-se da devida e necessária regulamentação do Artigo 177 da Lei Federal nº 14.597/2023, a chamada “Lei Geral do Esporte”, que prevê, em seu caput, que “A prevenção e o combate à manipulação de resultados esportivos têm por objetivo afastar a possibilidade de conluio intencional, ato ou omissão que visem a alteração indevida do resultado ou do curso de competição esportiva, atentando contra a imprevisibilidade da competição, prova ou partida esportiva com vistas à obtenção de benefício indevido para si ou para outros”.

Antes de adentrar de maneira mais incisiva no tema, é importante observar que a atividade de “betting” não se confunde com a de “gambling”: enquanto que esta refere-se a jogos de azar, em que o resultado é determinado principalmente pelo acaso e a sorte desempenha um papel fundamental, a atividade de “betting” está relacionada a apostas em eventos esportivos, políticos ou culturais e demanda um elemento prévio de habilidade e/ou de conhecimento, como a previsão de um resultado com base em estatísticas ou informações disponíveis.

As empresas de “betting” são hoje as principais patrocinadoras dos clubes que disputam as Séries A, B, C e D do Campeonato Brasileiro de Futebol: dos 124 times que disputam alguma divisão nacional em 2023, aproximadamente 70% têm patrocínio de alguma plataforma de apostas, muitos com patrocínios másteres que ocupam o espaço mais nobre da camisa dos times.

Um dos temas centrais e de maior discussão é exatamente o relacionado à “integridade nas apostas”, que busca oferecer ao apostador uma segurança plena contra possíveis fraudes, o que, por óbvio, prejudicaria pessoas idôneas em benefício daqueles que se valem de desvios e práticas escusas para obter vantagens ilícitas para si e para terceiros.

A preocupação é muito grande, pois o objetivo deve ser o de prevenir não apenas a manipulação dos resultados finais propriamente ditos, mas também de eventos específicos dentro de uma partida que não necessariamente decidem seu resultado (os chamados “spot-fixing”), mas que também têm importância para efeitos de apostas esportivas, como, por exemplo, o recebimento deliberado de um cartão amarelo em uma partida de futebol ou a perda proposital do primeiro set para um oponente inferior tecnicamente antes de vencer os outros dois em uma partida de tênis.

Outro problema envolve as informações privilegiadas que podem ser repassadas aos apostadores, dando-lhes uma vantagem indevida e, via de consequência, viciando a aposta. Essa questão envolve, ainda, a linha tênue que se estabelece entre o ilícito e uma simples “dica” repassada por alguém que “está absolutamente por dentro” dos últimos acontecimentos.

A maneira mais fácil de se separar uma coisa da outra é exatamente estabelecer de maneira objetiva quais são informações que pertencem ao domínio público. Se, por exemplo, for de domínio público que existe uma severa animosidade entre o treinador e o jogador mais importante de uma equipe de futebol e que, por isso, existe o risco iminente de ele ficar no banco de reservas em uma partida importante, então essa não será uma informação privilegiada para efeito de uma aposta esportiva.

Há, ainda, o indesejável e nefasto risco de violação das regras básicas pelos próprios participantes dos eventos esportivos, o que se dá quando um desportista aposta em suas próprias competições ou no seu próprio esporte, se valendo de seu conhecimento específico. Práticas como essas, por óbvio, são absolutamente indesejáveis porque maculam a credibilidade do próprio esporte e retiram delem a desejada e natural esportividade.

Pensando na importância do tema e na necessidade de disseminação de boas práticas de integridade no setor, foi criado no Brasil, a partir da iniciativa de algumas empresas do setor de gaming com atuação internacional, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), cujo principal objetivo é auxiliar as empresas do setor na definição de suas diretrizes primordiais visando a promoção do jogo responsável e racional.

É claro que esses não são desafios exclusivamente brasileiros e, por isso, uma série de organizações internacionais já estão em pleno funcionamento em prol da integridade nas práticas e nas apostas esportivas.

O “Sports Betting Integrity Forum – SBIF”, por exemplo, foi criado em 2012 no Reino Unido e reúne todo e qualquer interessado em compartilhar as melhores práticas e discutir questões atuais e futuras no cenário de integridade das apostas esportivas.

Já a “International Betting Integrity Association – IBIA”, anteriormente conhecida como “Sports Betting Integrity – ESSA”, fundada em 2005 e com sede em Bruxelas, na Bélgica, é considerada a principal organização global em termos de integridade para a indústria de apostas licenciadas e tem por objetivo central combater a corrupção nas apostas para proteger a integridade do desporto e dos seus respectivos negócios. Os membros da IBIA possuem mais de € 115 bilhões em faturamento com apostas por ano e representam quase 50% do todas as apostas online comerciais regulamentadas no mundo.

A “US Integrity”, por fim, nas palavras de seu CEO, Matt Holt, tem por objetivo “ajudar a garantir que todas as competições esportivas sejam justas e transparentes”. Para tanto, a US Integrity formaliza parcerias com as maiores ligas esportivas profissionais e conferências universitárias dos EUA, bem como com operadores e reguladores de apostas esportivas licenciados, para “garantir a integridade das apostas esportivas em todas as jogadas, em todos os jogos e todos os esportes”.

Especialmente no que tange à regulamentação, certificação e princípios aplicáveis ao chamado jogo responsável, a “World Lottery Association – WLA” é a organização internacional que congrega não apenas os operadores globais do ramo de loterias e apostas esportivas, mas também todos os fornecedores da indústria de jogos. Preocupada com a interação mundial que ocorre no setor de jogos, a WLA atua, por exemplo, em cooperação global com outras cinco entidades regionais: ALA (África), APLA (Asia-Pacífico), CIBELAE (America Latina), EL (Europa) e NASPL (America do Norte).

Além disso, mantém relação direta com o “Global Lottery Monitoring System – GLMS”. A WLA, desde 2006, passou a adotar e disseminar os chamados “Princípios do Jogo Responsável” e também o “Marco Legal do Jogo Responsável”, sendo exatamente com base nesses regramentos que certifica mundialmente os seus associados e lhes confere o selo de integridade para que possam operar no ramo das apostas esportivas e, ao mesmo tempo, transmitir a necessária segurança aos apostadores.

Apesar de não estarmos diante de nenhuma novidade em termos globais, apenas agora essa questão ganha destaque no Brasil, vindo exatamente daí a importância da Lei nº 14.790/2023. A forte influência do mercado internacional fica clara logo em seu Artigo 8º, que estabelece que a expedição e a manutenção da autorização para exploração de apostas de quota fixa serão condicionadas à comprovação, pela pessoa jurídica interessada, da adoção e da implementação de políticas, procedimentos e controles internos não apenas de prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de aramas de destruição em massa (inciso II), mas também de integridade de apostas e prevenção à manipulação de resultados e outras fraudes (inciso IV).

Isso significa, em outras palavras, que toda e qualquer empresa de betting interessada em operar no Brasil terá que, obrigatoriamente, estruturar um “mecanismo de segurança e integridade” (Artigo 19, caput) não apenas com elementos próprios específicos, mas também com aqueles estabelecidos no artigo 57 do Decreto Federal nº 11.129/2022, observadas as devidas adaptações. Terá, ainda, que providenciar a contratação de um profissional (“CIO – Chief Integrity Officer”) que possua o necessário conhecimento técnico, inclusive em questões afetas a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, bem como, à sua disposição, orçamento, equipe, autonomia e independência necessários para o bom desempenho de suas funções.

A pessoa jurídica que vier a receber autorização do Ministério da Fazenda para explorar as apostas de quota fixa, chamada no Inciso X do Artigo 2º da Lei de “agente operador de apostas”, será obrigada a integrar organismo nacional ou internacional de monitoramento da integridade esportiva (Artigo 19, § 2º) e ainda deverá adotar procedimentos de identificação que permitam verificar a validade da identidade dos apostadores (Artigo 23, caput). Trata-se, esta última, de uma exigência normalmente direcionada a instituições financeiras e internacionalmente conhecida como “Know Your Client – KYC” projetada para protegê-las de fraudes, corrupção, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

O procedimento de KYC envolve várias etapas para que possa ser conhecida com segurança as identidades dos clientes, haja perfeita compreensão acerca da natureza de suas atividades e da qualificação dos recursos utilizados e, por fim, sejam avaliados os riscos da ocorrência do crime lavagem de dinheiro. É por esse monitoramento que serão identificadas possíveis violações de integridade ou atividades suspeitas – ao analisar o cliente e a aposta realizada, deve ser avaliado se a atividade é considerada suspeita o suficiente para justificar o levantamento de um alerta de integridade e o encaminhamento de um reporte externo ao Ministério da Fazenda e ao Ministério Público.

Esse procedimento precisará ser muito bem estruturado pelas empresas de betting, já que o Artigo 26 estabelece uma série de vedações à participação, direta ou indireta, de determinadas pessoas na condição de apostadores, cabendo aos próprios agentes operadores de apostas o dever de informação às autoridades públicas, no prazo de cinco dias úteis, acerca dos indícios de manipulação de eventos ou resultados que identificar ou que lhe forem reportados no seu canal de denúncias, conforme previsão do Artigo 35 da Lei nº 14.790/2023.

Uma das vedações, aliás, recai sobre “agente público com atribuições diretamente relacionadas à regulação, ao controle e à fiscalização da atividade no nível federativo em cujo quadro de pessoal exerça suas competências” (Artigo 26, inciso III). Por essa razão, o § 3º desse mesmo Artigo 26 deixa expressamente consignado que violação dessa proibição caracterizará, inclusive, ato de improbidade administrativa e também conflito de interesses no exercício de cargo no âmbito do Poder Executivo federal.

Além disso, como as infrações administrativas puníveis de acordo com o regramento em análise não excluem a aplicação de outras penalidades previstas na legislação (Artigo 39, caput), se por uma empresa de betting se omitir e permitir, ainda que por mera negligência, que o agente público ocupante dessas atribuições específicas realize uma aposta esportiva, restará caracterizada “dação de vantagem indevida” e, via de consequência, estará consumado o ato lesivo previso no Inciso I do Artigo 5º da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei nº 12.846/2013), com a possibilidade de aplicações de sanções de caráter reputacional e pecuniário que podem chegar ao valor correspondente a 20% do faturamento bruto da empresa.

E o pior: tudo isso sem prejuízo da consumação da infração administrativa prevista no Inciso VIII do artigo 39 da Lei nº 14.790/2023, qual seja, “executar, incentivar, permitir ou, de qualquer forma, contribuir ou concorrer para práticas atentatórias à integridade esportiva, à incerteza do resultado esportivo, à transparência das regras aplicáveis ao eventos esportivo, à igualdade entre os competidores, e qualquer outra forma de fraude ou interferência indevida apta a afeta a lisura ou a higidez das condutas associadas ao desempenho idôneo da atividade esportiva”.

Da análise do conteúdo da lei recentemente publicada resta claro, portanto, que as empresas de betting somente poderão se estabelecer e operar regularmente no Brasil se implementarem sistemas de integridade corporativo com um Chief Integrity Officer funcionando como vértice condutor e com a necessária expertise para preparar e operar com a devida desenvoltura os códigos de conduta ética, as melhores práticas de investigação, os relacionamentos relevantes com partes interessadas externas e a estrutura da unidade de integridade.

É inegável, portanto, que a integridade corporativa está cada vez mais em evidência no Brasil e que, inclusive, será ela decisiva para garantir a higidez das apostas esportivas em todos os seus aspectos e para gerar, via de consequência, a necessária confiança para todos os apostadores interessados.

Marcelo Zenkner
Sócio e coordenador do Grupo de Prática Regulatória na TozziniFreire Advogados, Integridade Empresarial e Políticas de ESG, professor na Link School of Business