JUE 26 DE DICIEMBRE DE 2024 - 21:33hs.
Marcos Sabiá

"Desconhecimento, defesa setorial e má-fé atrasaram regulação das apostas", diz CEO do galera.bet

Em entrevista ao Estadão, Marcos Sabiá, CEO do galera.bet, afirma que o Brasil tem instrumentos sólidos para combater a lavagem de dinheiro, e diz que o endividamento alto do consumidor não é culpa das casas de apostas. Para o empresário, porém, nem sempre essas são críticas justas: “Estamos em um momento em que as bets estão recebendo cadeiradas em vez de discutir propostas”.

Nos últimos meses, as casas de apostas online se tornaram o centro das atenções no Brasil, gerando discussões controvertidas em função dos levantamentos e pesquisas que apontam alguns desafios, como o aumento do endividamento e dos problemas relacionados à ludopatia. Um estudo do Banco Central revelou que, em agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família transferiram cerca de R$ 3 bilhões para essas plataformas via Pix.

Na entrevista, Marcos Sabiá, ressaltou que, embora 85% da população esteja endividada, isso não se deve apenas às apostas esportivas, mas sim à desigualdade no Brasil. Ele enfatizou que a verdadeira questão é a falta de regulamentação, atribuída a um desconhecimento sobre o setor, influências de lobbies e a má-fé de algumas empresas que utilizam a atividade para propósitos ilícitos, como lavagem de dinheiro.

Quando temos discussões sobre endividamento, 85% das pessoas estão endividadas no Brasil. Agora, não venha me dizer que as pessoas estão endividadas por causa de apostas esportivas. Elas estão endividadas porque o Brasil é desigual. Cada real que a pessoa aposta sai de algum setor, mas é mentiroso, para não dizer criminoso, afirmar que esse dinheiro vai sair da geladeira da pessoa”.

Segundo o executivo, o maior problema é que o Brasil demorou demais para ter uma regulamentação para essas apostas - culpa, segundo ele, de um grande desconhecimento sobre o setor, de lobbies setoriais e também da má-fé de empresas que usam a atividade para fins obscuros, como lavagem de dinheiro ou financiamento político irregular.

Em relação a um endurecimento das regras para publicidade das casas de apostas - há quem defenda uma proibição total, nos moldes do que ocorre com as bebidas e o cigarro -, Sabiá diz que as empresas já fecharam um compromisso com o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) que traz uma série de requisitos para essas propagandas.

Por exemplo, o compromisso de não direcionar e não se utilizar de menores nas propagandas, fazer a propaganda de forma responsável, tratando o jogo como entretenimento e diversão, mas alertando sobre os riscos da compulsão”. Admite, porém, que “a regulamentação, como tudo na sociedade, é um organismo vivo”.

Marcos Sabiá é um executivo com um perfil que, a princípio, poucos relacionariam ao comando de uma casa de apostas: é pastor evangélico - não remunerado -, não bebe e não fuma. Mas afirma não ter dúvida de que é melhor um mercado de álcool e de cigarro regulado do que desregulado. “Foi a falta de regulação que criou o Al Capone nos Estados Unidos”.

Sua empresa faz parte do grupo Playtech, fundado na Estônia em 1999, listado na Bolsa de Valores de Londres e presente em 19 países. No primeiro semestre de 2024, o negócio global teve receita de 907 milhões de euros, com lucro de 10 milhões de euros, de acordo com o balanço.

Por que o Brasil só agora está regulamentando as apostas esportivas e jogos online, uma vez que essas operações começaram no fim de 2018?
Existe um tripé para responder a isso, que envolve desconhecimento, defesa setorial e, em alguns casos, má-fé. Grande parte desse atraso no Brasil se deve a uma agenda que temos desde a Era Vargas, quando começamos a ter o jogo relegado à ilegalidade, muito por influência de convicções religiosas. Eu digo isso com propriedade, porque eu sou pastor evangélico - faço isso de forma voluntária, nunca fui remunerado.

O Brasil está, junto com a Indonésia, entre os países do G-20 que não regulamentaram as bets. A Indonésia tem justificativas de ordem religiosa, porque é um país de maioria muçulmana, e eu respeito bastante eles serem contra o jogo. Sou uma pessoa que não bebe e não fuma, mas não tenho dúvida de que é melhor um mercado de álcool e de cigarro regulado do que desregulado. Foi a falta de regulação que criou o Al Capone nos Estados Unidos.

 O componente de má-fé do tripé vem daqueles que operam o jogo ilegal para lavagem de dinheiro, ou para gerar caixa dois para financiar campanhas políticas. Esse operador parte do pressuposto de que uma legalização do jogo, uma regulação, será pior para os seus negócios, porque ele não vai conseguir operar num ambiente de legalidade.

Sua opinião então é que a nova legislação é favorável tanto para empresas quanto para a sociedade?
A Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda foi bastante republicana nesses debates, abrindo a discussão para o setor, órgãos da sociedade civil, associações de representação de jogadores, Ministério da Saúde e Congresso.

A regulamentação traz lições aprendidas do que ocorreu ao redor do mundo em termos de regulamentação. Vimos os países que tentaram regulamentar fazer uma tributação excessiva e perceberam que, se você tributa demais o jogador, ele vai para o mercado ilegal e a regulamentação não atinge seu objetivo. Por outro lado, o objetivo do Estado deve ser aquela chamada “curva de Laffer”, ou seja, encontrar o máximo de tributação com um ambiente onde as pessoas sejam estimuladas a permanecer na legalidade. É nesse ponto ótimo que se deve tributar.

Há casos de pessoas que pegam empréstimos para apostar, e até jovens se envolvendo com agiotas por isso. Há solução para isso?
Estamos em um momento em que as bets estão recebendo cadeiradas em vez de discutir propostas. Quando temos discussões sobre endividamento, 85% das pessoas estão endividadas no Brasil. Agora, não venha me dizer que as pessoas estão endividadas por causa de apostas esportivas. Elas estão endividadas porque o Brasil é desigual.

Somos a oitava economia do mundo, mas há um abismo entre ricos e pobres. Há um risco de as pessoas se endividarem com apostas esportivas, sim. Mas menores de idade não poderão jogar, e já não podem hoje no galera.bet. Não faltaram sugestões de colocar empréstimos dentro de bets. Mas o próprio setor se regulou e exigiu as operações à vista. Sempre tivemos pessoas pegando empréstimos para jogar, porque são pessoas compulsivas. As pessoas doentes devem ser tratadas assim e a regulamentação, com o sistema online, permitirá bloquear o CPF do apostador. Estamos discutindo também a possibilidade de criar uma espécie de score de apostadores para identificar o endividamento.

Como lidar com esse problema do vício em apostas?
Identificamos o ludopata com recursos de inteligência artificial para começar a tornar a experiência dessa pessoa mais difícil, a fim de desestimulá-la a jogar. Podemos até bloquear essa pessoa na plataforma. Só que se eu não tenho isso hoje como uma política de Estado. Então, o bloqueio é quase inócuo, porque, se o jogador é bloqueado na minha plataforma, ele vai jogar em outra plataforma que não tenha essa preocupação. As empresas sérias do setor sempre foram entusiastas de uma regulamentação que pudesse pensar nessa combinação de um ambiente de negócio saudável e que proteja os vulneráveis.

Nesse período sem regulamentação, problemas de golpes, publicidade enganosa e lavagem de dinheiro se acumularam no país. Como combater?
O Brasil tem instrumentos muito sólidos para combater isso. Desde o começo, nós fizemos questão de ressaltar a importância de ter o sistema bancário do Brasil (no ecossistema das bets), não só como parceiro através dos meios de pagamento, mas como benchmarking (padrão de referência) para algumas das práticas em relação à regulação do mercado de apostas esportivas.

As casas de apostas são muito similares aos bancos. As pessoas depositam o capital delas, tangível e intangível, e fazem isso pela confiança no sistema. Você deposita dinheiro no banco X, e dorme tranquilo porque você não tem medo de que o dinheiro suma. Nos países em que começa a ter esse medo... Nós já vimos o que aconteceu aqui na época do plano Collor, que as pessoas começam a tirar dinheiro do banco para colocar embaixo do colchão.

No mercado de cigarros e bebidas alcóolicas, as propagandas foram proibidas, e já há discussões sobre isso ser estendido às bets. Como o setor vê isso?
As boas empresas do setor têm tanta preocupação com esse tema que até já foi alvo de discussões junto com o Ministério da Fazenda. A regulamentação, como tudo na sociedade, é um organismo vivo. Num compromisso em que nós construímos junto com o Conar, a gente traz uma série de requisitos para as empresas obedecerem nas propagandas.

Por exemplo, o compromisso de não direcionar e não se utilizar de menores nas propagandas, fazer a propaganda de forma responsável, tratando o jogo como entretenimento e diversão, mas alertando sobre os riscos da compulsão e de entender o jogo como complementação de renda ou como uma possibilidade de enriquecimento.

A legislação das bets não deveria ter sido mais dura contra essa publicidade de enriquecimento e com a oferta de bônus para apostadores?
Não, eu acho que a regulamentação endereça bem isso, até porque a gente acaba com o bônus para não ter esse atrativo, a partir de janeiro. Os bons operadores são os mais preocupados com o que os maus fazem com a publicidade.

O que a regulamentação vai mudar no dia a dia da sua empresa?
Desde janeiro de 2022, nós já operamos como uma empresa regulada, porque sou controlado por uma empresa de capital aberto, na Bolsa de Londres, que não quer colocar sua reputação em risco. Somos uma subsidiária que defende valores, combate o jogo ilegal, a publicidade enganosa e a ludopatia.

Combatemos também a utilização e a exploração de menores em relação ao jogo. Desde o primeiro momento, exijo que a pessoa digite seu CPF para abrir uma conta. De forma instantânea, verificamos se esse CPF é de um menor. Se for, não permito a abertura de conta. Identificamos se o CPF for de uma pessoa politicamente exposta, de uma pessoa com sentença condenatória transitada em julgado, de um morto ou de um ludopata. Não quero transitar recursos que sejam oriundos do crime na minha plataforma. É obrigatório que o depósito seja da mesma titularidade do apostador, também para evitar lavagem de dinheiro.

O varejo tem sido um forte crítico das bets. Como o sr. vê essa questão?
É inevitável que a gente tenha discussões entre diversos setores, assim como teve quando veio a Uber para o Brasil e tivemos a discussão com os táxis. Hoje ninguém discute se vai usar Uber, 99 ou táxi, até porque você passou a ter um ambiente regulado nesse sentido. É inevitável que diversos setores da economia se movimentem, incomodados com o crescimento das casas de apostas. Cada real que a pessoa aposta sai de algum setor, mas é mentiroso, para não dizer criminoso, afirmar que esse dinheiro vai sair da geladeira da pessoa.

Quem faz isso é o jogador compulsivo, é o ludopata. Esse público é de 1% a 2% de todos os jogadores. A pessoa não vai deixar de comer ou de pagar conta para jogar, mas pode deixar de ir em outro entretenimento, porque bet é um setor de entretenimento. O Estado não pode infringir essas liberdades individuais desde que essa pessoa esteja usufruindo de algo saudável, de algo que lhe faça bem, que não afronte a sua integridade física.

Nas loterias, são informados os valores sobre apostas e prêmios. Com a legislação em vigor, isso será possível para as bets também. Essa transparência vai ajudar a reputação do setor?
Isso vai ajudar muito. Toda hora sai um relatório falando sobre bet. Há bons relatórios e há relatórios omissos. Esse mercado tem empresas com capital aberto no exterior, auditadas e aquelas que levam dinheiro para o crime organizado. Tem bet envolvida em operações da Polícia Federal em que você abria conta com o número do celular, não precisava nem do CPF.

A partir do ano que vem, as empresas precisarão transmitir informações em tempo real para o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados do governo federal). Aí, sim, nós saberemos quanto foi depositado, sacado e quanto ficou na conta. Os relatórios bons fizeram ressalvas sobre a dificuldade de reunir informações sobre o setor, como fez o Itaú.

A legislação deve fazer uma limpeza no mercado, mas ainda assim falamos de mais de uma centena de empresas. Isso pode provocar um movimento de consolidação no setor?
Isso já está ocorrendo de forma intensa. Sairemos de um mercado de apostas com milhares de marcas para, no máximo, 360. Não acredito que teremos esse número de empresas com licenças no Brasil, porque não são todas que estão prontas para atender a todos os requisitos. O mercado não tem grandes margens, é comoditizado e tem competição de grandes empresas internacionais com alta capacidade de investimento.

Esse mercado precisa de muito investimento. E isso é outro ponto: além de as bets devolverem 85% do que entra para os apostadores, esses 15% viram patrocínios de clubes, investimentos em mídia, entidades beneficentes e empregos. São empresas que colocam centenas de milhões de reais em outros setores da economia. Ainda será preciso pagar os impostos. Muitas empresas vão sair ou se unir para trabalhar no Brasil.

Fonte: Estadão