Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval; na vida de um sonhador, de um sonhador…, já notou o poeta. Mas o próprio poeta também canta que dinheiro na mão é solução… e solidão, e solidão, e solidão, e solidão…
Sim, a avareza é um pecado capital; mas não é disso que se trata as apostas de quota fixa. Apostar não é sobre o resultado final; apostar não é sobre enriquecer; apostar não é sobre ganhar ou perder, mudar de vida ou deixar de trabalhar. Apostar é sobre aproveitar a jornada; apostar é sobre se divertir, distrair, entreter; apostar, como tudo na vida, é sobre equilíbrio – entre ganhos e perdas, entre o essencial e o supérfluo. Apostar é, acima de tudo, sobre autocontrole e moderação.
Acontece que há outros seis pecados capitais, e a soberba é o mais traiçoeiro de todos. Enquanto os demais vícios, como ensinava Santo Agostinho, se apegam ao mal, para que se realize, a soberba se apega ao bem, para que pereça.
Em outras palavras, o orgulho acaba por gerar no homem uma pretensa aura de bondade, presente e/ou futura. Trata-se, por isso mesmo, do rei de todos os pecados, no dizer de Richard W. Dortch, ou da mãe de todos os vícios, nas palavras de São Tomás de Aquino.
E há algo de mais soberbo do que, com uma única canetada – executiva, legislativa ou judiciária –, ainda que com boas intenções – das quais, diria São Bernardo de Clairvaix, o inferno está cheio –, se definir o que um cidadão poderá fazer com o seu dinheiro? Pois bem, foi isso o que se viu acontecer, na última semana.
À parte as respectivas pretensões do Governo Federal e a audiência pública ocorrida perante o Supremo Tribunal Federal sobre o impacto das apostas online, a decisão do ministro Luiz Fux, em sede de medida cautelar, determinando que o Ministério da Fazenda implemente medidas imediatas que impeçam que os montantes percebidos pelos beneficiários de programas sociais e assistenciais (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada etc.) sejam utilizados para fins de apostas de quota fixa pode ser enquadrada perfeitamente no pecado supracapital da soberba.
Com ou sem um objetivo direto dessa magnitude, a verdade é que esse tipo de deliberação traduz um pensamento de que os pobres precisam ser (re)educados e apresentados à razão. Com efeito, como isso leva tempo, é necessário, por vezes, decidir-se por eles e regular a pobreza, ainda que sob o prisma da moralidade – em especial quando se está diante de uma dádiva, na relação Estado/beneficiários, como costumeiramente se enxergam os programas sociais e assistencialistas, em particular o Bolsa Família.
Ora, conforme estabelece a Lei nº 14.601/2023, que instituiu o Programa Bolsa Família, este, enquanto política social, corresponde a uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania (art. 1º, § 1º), destinando-se à transferência direta e condicionada de renda (art. 2º).
Enquanto transferência direta, o benefício em forma de dinheiro confere (alguma) autonomia ao indivíduo. Não se trata, porém, de autonomia plena, geral, ampla e irrestrita: há certas condicionalidades, previstas no art. 10.
No rol dessas condicionalidades, estão a realização de pré-natal, o cumprimento do calendário nacional de vacinação, o acompanhamento do estado nutricional dos beneficiários de até 7 anos de idade e a frequência escolar para as crianças e os adolescentes.
Nesse contexto, nenhuma dessas exigências corrobora, salvo melhor juízo, em maior ou menor grau, a decisão judicial acima referida, de proibir o uso dos montantes recebidos por meio de políticas socioassistenciais na modalidade lotérica apostas de quota fixa.
A bem da verdade, esse tipo de controle da renda transferida pelo Bolsa Família a seus beneficiários, para além de contraproducente e indesejável, ressoa inviável e incompatível com a própria lógica da legislação brasileira. Ora, está-se perante uma renda mínima baseada na dignidade da pessoa humana, de caráter universal e direto: uma fiscalização dessa monta parece ser exatamente o oposto do espírito – e quiçá do desígnio – do Programa.
Aliás, o parágrafo único do art. 3º da lei vai ao encontro desse entendimento, ao prescrever que, para o alcance dos objetivos do Programa Bolsa Família, há de se agir com estrito respeito à privacidade das famílias beneficiárias, inclusive para fins da Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”).
Assim, a partir da decisão do ministro Luiz Fux, difícil será pôr-se em prática esse respeito, dado que o impedimento ao uso de recursos obtidos com políticas de cunho social e assistencialista – obrigatoriamente – fulanizará o assunto, porquanto estará vinculado a uma pessoa específica, beneficiária do respectivo programa.
Logo, seja sob o aspecto do respeito à privacidade, intimidade e autodeterminação do indivíduo, seja por força da tutela dos direitos fundamentais, do livre desenvolvimento da personalidade, da dignidade humana e do pleno exercício da cidadania, enquanto os dados não comprovarem um tal risco massivo de endividamento da população por conta das apostas, e em particular uma mais acentuada probabilidade disso acontecer no seio dos beneficiários do Bolsa Família, dar-se maior ênfase aos pobres neste particular, se não reflete comportamento preconceituoso e discriminatório, é, no mínimo, exagerado e desproporcional – ou melhor, é um pecado mais do que capital.
Felipe Crisafulli
Sócio do Ambiel Advogados. Especialista em Direito Desportivo e Regulamentação de Jogos e Apostas. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal). Membro da Comissão de Direito dos Jogos, Apostas e do Jogo Responsável da OAB/SP.
Fonte: GMB