VIE 4 DE OCTUBRE DE 2024 - 23:17hs.
Danielle Franco, head de direito administrativo do GVM Advogados

Arte, loteria e Poderes: reflexões sobre as armadilhas do legislar irreflexivo

A evolução social demanda mudanças legais. O Legislativo deve criar leis com visão clara, técnica meticulosa e considerando seu impacto. No caso das apostas esportivas, porém, carece de justificativa e pode ter efeitos prejudiciais, levando a questionamentos constitucionais. Essa é a avaliação de Danielle Franco, head de direito administrativo do GVM Advogados, em artigo para o JOTA. Ela aponta que “limitações podem favorecer a União em detrimento dos estados e dificultar o crescimento econômico”.

É da essência da atividade humana a constante evolução e mudança nos padrões comportamentais, o que impõe ao operador do Direito a difícil tarefa de acompanhar os reflexos que essas novas relações trazem para o mundo jurídico e, por conseguinte, conjecturar as mudanças que precisarão ser implementadas no ordenamento para acompanhar essa evolução.

Nesse ponto, o Poder Legislativo tem um papel fundamental na implementação destas mudanças no ordenamento jurídico. A atividade de legislar é de uma delicadeza tamanha que pode ser comparada ao trabalho de um artista: ambos devem começar com uma visão clara do resultado que pretendem alcançar; pela seleção cuidadosa das ferramentas e técnicas que serão empregadas; e, finalmente – mas não menos importante -, devem ter o cuidado de projetar uma visão do impacto que sua obra trará para a vida de terceiros.

Isso porque, assim como uma obra de arte pode influenciar toda uma geração (teria Tarsila do Amaral previsto que o Abaporu seria o símbolo do Modernismo Brasileiro?), a atividade de legislar implica “fazer experiências com o destino humano[1].

Essa atividade legislativa precisa ser feita com cuidado meticuloso, respeitando a urgência adequada para o tema, mas sem renunciar à delicadeza necessária para a sua estruturação em linha com todo o ordenamento jurídico (leia-se: não só a lei posta, como as decisões judiciais já proferidas), sob pena de lançar no mundo jurídico normas fadadas à inconstitucionalidade[2].

Essa preocupação com a técnica legislativa, contudo, não parece ter sido observada no âmbito de criação da Lei n.º 14.790/23, norma tão ansiosamente aguardada pelo mercado de loterias por, finalmente, dar início à regulamentação do mercado de apostas esportivas.

A nova legislação trouxe não somente um marco importante para o aquecimento no mercado de regulamentação das bets, mas uma inquietante discussão na seara jurídica decorrente de dois dispositivos: os §§2º e 4º do artigo 35-A.

A discussão já chegou ao Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 7640/SP[3] e vai reacender discussões que já passaram por aquela Corte e, até então, pareciam definitivamente superadas.

Para contextualizar melhor a reflexão proposta nesta análise, é importante relembrar que o Supremo, ao julgar as ADPF’s n.º 492 e 493 e a ADI 4986 em 2020, atribuiu o caráter público à prestação de serviços lotéricos, que podem ser explorados pela União, Estados e Distrito Federal, sendo atribuída de forma exclusiva ao ente federal a competência legislativa sobre o tema.

A lei n.º 14.790/23 começou bem ao delimitar no artigo 35-A, §1º, que “A exploração de loterias pelos Estados e pelo Distrito Federal poderá ser efetuada mediante concessão, permissão ou autorização […]”, dando a correta aplicação na nova lei dos limites estabelecidos pela decisão do Supremo: os serviços públicos lotéricos podem ser prestados de forma indireta pelo particular, mediante concessão, permissão ou autorização.

O problema começa a se desenhar a partir do §2º, que inseriu a seguinte restrição: “Ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas 1 (uma) única concessão e em apenas 1 (um) Estado ou no Distrito Federal.”

E continua no §4º, limitando a realização de propagandas nos Estados e Distrito Federal em suas circunscrições: “A comercialização e a publicidade de loteria pelos Estados ou pelo Distrito Federal realizadas em meio físico, eletrônico ou virtual serão restritas às pessoas fisicamente localizadas nos limites de suas circunscrições ou àquelas domiciliadas na sua territorialidade.”

Os dispositivos, que não constavam da primeira versão do PL enviado à Câmara dos Deputados, foram inseridos pelo Senado Federal por intermédio da emenda 135 da Comissão de Assuntos Econômicos, e aprovados integralmente quando do seu retorno à Câmara[4].

A análise da tramitação do processo legislativo mostra que sua criação ocorreu, aparentemente, sem a apresentação da justificativa jurídica e econômica para sua imposição, o que levanta discussões não somente acerca das inconstitucionalidades muito bem desenhadas na inicial da ação, mas, especialmente, sobre as consequências que sua aplicação pode causar na estrutura jurídica e econômica do país.

Este cenário que será agora analisado pela Corte Suprema deu origem à reflexão que inaugura este artigo, e traz consigo dois elementos que muitas vezes passam desapercebidos na mente dos “criadores” de medidas jurídicas:

(I) o importante papel do Poder Legislativo na criação de mecanismos destinados à implementação de novas medidas econômicas e

(II) os cuidados que essa atividade precisa adotar, especialmente para evitar a criação de normas que estejam em desacordo com as pré-existentes e tragam como resultado efeitos prejudiciais à economia.

A demanda pela criação de mecanismos que permitam ampliar o potencial arrecadatório do Estado certamente exerce importante pressão nos Poderes Executivo e Judiciário. A tarefa legislativa, por sua vez, é complexa e exige a destreza de elaborar normas que possam não somente ser compreendidas por todos, mas especialmente tragam o efeito pretendido com a sua criação, e não o inverso[5].

Exige-se, portanto, não somente o uso da boa técnica, como a utilização de ferramentas que permitam antever os resultados da sua implementação.

É inquestionável que o mercado de loterias e, especialmente, a regulamentação do setor de apostas esportivas, possuem força para movimentar os números do país, não somente do ponto de vista fiscal com seu potencial arrecadatório[6], mas também com a criação de novos postos de trabalho destinados à implementação das atividades dentro do país.

Um levantamento preliminar de consultoria especializada em recrutamento indica que de 2023 para 2024 a procura por profissionais no setor cresceu 37%[7] – sem mencionar outros postos de trabalho indiretos que serão necessários a partir do crescimento da atividade.

Toda essa potencialidade exige (ou deveria ter exigido) a utilização de ferramentas da ciência econômica que ajudam, ao menos em parte, a prever as consequências no âmbito financeiro decorrente da criação de novas medidas jurídicas (law and economics).

Toda norma (tanto lei, quanto decisão judicial) nasce com um objetivo e traz impactos e incentivos à sociedade, o que impõe ao seu criador a obrigação de colher informações para além das jurídicas sobre a matéria que será legislada – como as repercussões econômicas, sociais e políticas que decorrerão daquela medida.

A decisão legislativa de limitar a atuação de operadores a somente um Estado da Federação (ou na União Federal) de forma concomitante e, ainda, impedir a propaganda para além dos seus limites, acaba trazendo como efeito não somente um privilégio à União Federal[8], mas um severo impeditivo ao crescimento desta atividade econômica nos demais Estados da Federação.

É possível listar, de antemão, pelo menos duas consequências: diminuição da competitividade, com operadores dando prioridade à atuação em Estados com maior projeção econômica em detrimento aos de menor projeção; queda na arrecadação prevista para os Estados e dificuldade na implementação de políticas desenhadas a partir daquela receita.

Decisões judiciais e normas jurídicas impactam a economia. Acompanhar a evolução da sociedade e a forma como ela se organiza é uma tarefa delicada e que exige cuidado por parte de quem recebeu o poder de normatizar essas mudanças. A partir do momento que esse cuidado não foi observado em sua esfera original, cabe à outra mensurar estes impactos e fazer as correções necessárias no curso da obra para evitar o nascimento de uma aberração que traga mais prejuízos do que benefícios, tarefa esta que se espera seja bem desenhada novamente pelo Supremo Tribunal Federal.

[1] JAHRREISS, APUD MENDES, Gilmar Ferreira. Teoria da Legislação e Controle de Constitucionalidade: Algumas Notas. Revista Jurídica Virtual – Brasília, vol. 1, n. 1, maio 1999.)

[2] Assinale-se, por outro lado, que as exigências da vida moderna não só impõem ao legislador um dever de agir, mas também lhe cobram uma resposta rápida e eficaz aos problemas que se colocam (dever de agir com a possível presteza e eficácia). É exatamente a formulação apressada (e, não raras vezes, irrefletida) de atos normativos que acaba ocasionando as suas maiores deficiências: a incompletude, a incompatibilidade com a sistemática vigente, incongruência, inconstitucionalidade etc.”  (MENDES, Gilmar Ferreira. Teoria da Legislação e Controle de Constitucionalidade: Algumas Notas. Revista Jurídica Virtual – Brasília, vol. 1, n. 1, maio 1999.)

[3] Ação proposta em 03.05.2024 pelos Governadores dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Acre, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e do Distrito Federal, de relatoria do Ministro Luiz Fux.

[4] O parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara voto pela aprovação integral da emenda do Senado sob o fundamento de que “promovem importantes aprimoramentos no texto do Substitutivo originalmente aprovado pela Câmara dos Deputados.”

[5] A seriedade da atividade legislativa já foi comparada aos cuidados de lidar com uma bomba: “Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis” (LEAL, Victor Nunes. Técnica Legislativa. In: Estudos de direito público. Rio de Janeiro, 1960.)

[6] A mensagem do Ministro da Fazenda ao Presidente da República quando do envio do primeiro texto do projeto de lei (EMI 94/2023) aponta no item 22 que “a regulamentação das apostas de quotas fixas possui grande potencial arrecadatório, contribuindo para a melhoria da situação fiscal e econômica do país. E, como consequência, auxilia na prevenção da evasão fiscal, dos crimes de lavagem de dinheiro e demais crimes e contravenções penais ligadas à prática de jogos ilegais.”

[7] https://www.estadao.com.br/economia/sua-carreira/apostas-esportivas-empregos-nprei/. Acesso em 20.05.2024.

[8] Sobre este ponto, interessante destacar que no julgamento da ADPF n.º 492 o STF já tinha destacado os perigos do abuso do poder de legislar e a impossibilidade da União Federal extrapolar seus limites legislativos para, indiretamente, criar um benefício a si mesma: “não se pode inferir do texto constitucional a possibilidade de a União, por meio de legislação infraconstitucional, excluir outros Entes Federativos da exploração de atividade econômica (serviço público) autorizada pela própria Constituição. Isso se dá não só porque tal realidade cria um desequilíbrio em seu próprio benefício, não autorizado pelo art. 19, III, da Constituição Federal de 1988, mas também em razão de a Constituição não lhe ter atribuído essa autoridade. Isso se dá não só porque tal realidade cria um desequilíbrio em seu próprio benefício, não autorizado pelo art. 19, III, da Constituição Federal de 1988, mas também em razão de a Constituição não lhe ter atribuído essa autoridade.”

Danielle Franco
Head de direito administrativo do GVM Advogados