LUN 25 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 05:30hs.
Ana Clara Marques de Barros Santos e Allexandre Assis Bighetti, advogados

Reforma tributária coloca em risco alta canalização esperada no setor de iGaming no Brasil

O setor de iGaming brasileiro passa por um momento de preocupação em função de a reforma tributária ter incluído a atividade no Imposto Seletivo. A carga tributária atual, que pode alcançar 46%, já é alta e agregar uma nova taxa coloca em risco a existência de um mercado regulado. Em artigo para o GMB, os advogados Ana Clara Marques de Barros Santos e Allexandre Assis Bighetti, da Associação Internacional de Gaming – AIGAMING, analisam o tema e apontam que tributos adicionais podem desincentivar a regulamentação eficaz.

Em meio à uma regulamentação que, às vésperas do final do primeiro prazo de requerimento da autorização de exploração de apostas de quota fixa no país, os operadores não têm visibilidade de todas as regras às quais estarão sujeitos.

Paralelamente, surge uma notícia inesperada de que o setor de jogos pode ser incluído no rol do Imposto Seletivo com o advento da reforma tributária, o que suscita a questão:

Por quanto tempo será verdadeira a afirmação de que o setor de jogos de apostas no Brasil é operado de maneira informal, ou como é chamado pelo setor: no "mercado cinza"?

A implementação da regulamentação simultaneamente à tramitação da reforma tributária cria um cenário de incertezas e preocupações para as empresas do setor e coloca em risco a existência de um mercado regulado.

A International Betting Integrity Association (IBIA) e a H2 Gambling Capital elaboraram um relatório que avaliou a regulamentação de apostas em 20 jurisdições, destacando os pontos fortes e fracos de diversos marcos regulatórios e fiscais para apostas. Este estudo enfatizou a importância de um equilíbrio entre regulamentação e liberdade de mercado para maximizar a arrecadação, identificando cinco critérios que determinam o sucesso de um mercado regulado. Entre esses critérios, a tributação alta se destaca como um dos mais influentes.

A Câmara dos Deputados aprovou recentemente, em primeiro turno, o texto do Projeto de Lei Complementar que regulamenta as normas gerais da reforma tributária, introduzida em 2023 na Constituição Federal.

Embora existam diversas incertezas pela frente, incluindo a demora na publicação do texto final aprovado que será remetido para apreciação pelo Senado, o Congresso Nacional deve atentar-se para que o novo formato de tributação não onere excessivamente o setor de jogos de apostas, evitando uma baixa canalização para o mercado regulado. Isso é crucial para não comprometer todo um esforço regulatório voltado para promover o jogo consciente, seguro e responsável.

A canalização, neste contexto, refere-se ao processo de direcionamento de apostas feitas pelos consumidores para os operadores licenciados e sujeitos a uma regulamentação governamental.

Para entender se a tributação implicaria na manutenção do mercado brasileiro no mercado cinza, é necessário analisar a carga tributária atual dos operadores de apostas e como ela pode ficar com a implementação da reforma tributária.

Atualmente, os operadores de apostas esportivas e jogos online estão sujeitos a uma destinação específica de 12% sobre o Gross Gaming Revenue (GGR), que é a receita dos jogos descontada a premiação e os impostos pagos sobre a premiação.

Se comparado com outras jurisdições, temos:

 



Com esse comparativo o IBIA demonstrou a proporcionalidade direta entre a incidência de uma carga tributária alta e a canalização de apostadores para o mercado regulado.

Com isso, é preciso avaliar a tributação brasileira no contexto em que as empresas de apostas esportivas e jogos online estão sujeitas ao Imposto sobre a Renda (IRPJ), à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), ao Imposto Sobre Serviços (ISS), às Contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). Associados ao GGR, esses tributos resultam em uma carga tributária que pode alcançar algo em torno de 46%, colocando o Brasil entre as jurisdições com tributações mais elevadas.

Com a reforma, já é possível prever que as receitas oriundas dos concursos e prognósticos, incluindo apostas esportivas e jogos online, estarão sujeitas ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cuja alíquota estimada pelo governo é de 26,5%.

Embora os concursos e prognósticos (incluindo apostas esportivas e jogos online) tenham uma sistemática de apuração específica, a alíquota deverá ser a mesma aplicada aos demais setores não beneficiados. Além dos tributos mencionados e da destinação sobre o GGR, se aprovada a incidência do Imposto Seletivo sobre os concursos de prognósticos, teremos um cenário de possível super oneração tributária do setor, especialmente por ser desconhecida a alíquota do Imposto Seletivo que incidirá sobre o preço do serviço, ou seja, o montante pago pelo apostador.

O possível cenário tributário para os operadores de apostas esportivas e jogos online seria:

 



* Esta carga adicional, embora não tenha natureza tributária, representa um custo significativo que se soma aos demais tributos – sem mencionar que as obrigações acessórias de destinação dos 12% de GGR ainda não são conhecidas pelo mercado, já que não foi editada a normativa que disciplinará as regras de destinação.

A Associação Brasileira de Apostas Esportivas (ABRAESP) consolidou dados do Licensing System for Gambling de Copenhagen Economics 2016, demonstrando a canalização em mercados regulamentados versus a carga tributária:

 



As experiências de outros países em seus próprios processos de regulação deixam ainda mais evidente que a relação entre tributação e canalização é direta: quanto maior a carga tributária, menores são os percentuais de canalização para o mercado regulado.

Se o Brasil insistir em onerar o setor de apostas, é possível que se tenha um efeito contrário ao pretendido pelo fisco e, ao invés de ocorrer o aumento da arrecadação com o advento de um novo setor regulado, o que ocorre, em verdade é a não canalização dos apostadores para o mercado regulado (altos índices de informalidade) e, consequentemente, redução da arrecadação pretendida pelo governo.

A lógica é simples e não requer sofisticação: se o governo onera o operador, este adequa a sua operação para suportar o ônus e, por óbvio, repassa ao apostador por meio de ajuste de odds, premiações menos atrativas e outros, que pode resultar, inclusive, no crescimento do mercado cinza.

O Brasil tem lutado há muitos anos pela regulamentação do setor, mas ainda está longe de estar consolidado, haja vista que ainda não há edição de atos normativos que disciplinem todos os aspectos relevantes de um mercado regulado, o que nos torna um mercado altamente vulnerável ao risco de a regulamentação não ser efetiva e o setor se tornar meramente simbólico, uma vez que os apostadores continuarão a operar no mercado cinza.

É de se mencionar ainda que a não canalização levanta uma preocupação ainda maior: perder de vista que o grande objetivo da regulamentação é precisamente criar um ambiente seguro, controlado e confiável para que os consumidores efetivem suas apostas, promovendo maior transparência e a responsabilidade no setor.

A ABAESP também levantou dados assustadores da experiência vivida por Portugal, que ao revisitar e atualizar os dados entre 2018 e 2023 e comparar-se com o Reino Unido (estudos conduzidos pela UK Gambling Comission e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa - SCML):

 



Isso significa que o jogo ilegal em Portugal é de 75% (setenta e cinco por cento), o que significa que três quartos dos consumidores estão consumindo conteúdo que não está sujeito à fiscalização do agente regulador português e que não podem ser punidos por práticas lesivas e que não respeitem os parâmetros de jogo responsável.

Diante dos números, é imperativo que o Brasil encontre um equilíbrio na tributação do setor de apostas para poder finalmente deixar de operar no mercado cinza. Um sistema tributário justo e uma regulamentação clara e eficiente são essenciais para promover um ambiente de jogo seguro e responsável, que priorize e proteção ao apostador por meio do jogo responsável e da integridade do setor.

Ana Clara Marques de Barros Santos
Diretora jurídica da Associação Internacional de Gaming – AIGAMING e Head of Legal da Sorte Online

Allexandre Assis Bighetti
Consultor tributário da Associação Internacional de Gaming – AIGAMING e advogado do Dessimoni & Blanco Advogados