Como todos estamos acompanhando na mídia em geral e, em especial, no próprio GMB, as empresas de telefonia estão derrubando os websites das empresas que operam apostas de quota fixa no território brasileiro. Com efeito, inúmeras casas de apostas estão deixando de registrar apostas e pagar prêmios aos apostadores brasileiros e ninguém tem dúvidas que isso é muito ruim para credibilidade do setor.
Tais eventos são frutos do determinado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no Processo nº: 1015703-46.2024.4.01.0000. Nessa demanda a Loterj (Loteria do Estado do Rio de Janeiro) pede, legitimamente, vale destacar, o bloqueio de todas as plataformas de operadores lotéricos que não tenham autorização para explorar tal atividade no território do Estado do Rio de Janeiro.
Daí você se pergunta: sem querer entrar em meandros jurídicos, qual o caminho mais fácil para permitir que tais operadores (nacionais e internacionais) continuem operando até 31/12/2024, data limite estabelecida pelo Ministério da Fazenda? A resposta na qual chegamos é relativamente simples: basta uma portaria do próprio Ministério da Fazenda. Agora vamos explicar de maneira resumida.
Pelo princípio constitucional da não intervenção estabelecido nos artigos 34 e 35 da Constituição da República de 1988 (CR/88), cuja interpretação direcionada ao caso concreto resulta no estabelecimento da regra onde um ente federativo não pode intervir no serviço público de loterias do outro. E por conseguinte, considerando a exploração das apostas de quota fixa como serviço público da União Federal, cuja jurisdição é em todo território nacional, salvo melhor juízo, bastaria que o Ministério da Fazenda publicasse uma portaria com o seguinte:
Com essa simples portaria, nos parece que as ações que hoje estão em ebulição no país perderiam objeto e os estados, que estão atuando legitimamente pelos seus interesses, repetimos, terão que repensar suas ações de bloqueio até 31/12/2024. Isso porque todas as bets estarão expressamente autorizadas até a data estabelecida na Portaria SPA/MF Nº 827/24:
Por oportuno, deve ser notado que a referida Portaria não autorizou os operadores de bets – até consideramos possível uma interpretação no sentido de uma autorização tácita, mas lendo o conjunto das regras publicadas pelo referido ministério, nos parece mais uma espécie de período de leniência do Governo Federal. Daí que uma portaria com uma autorização expressa e geral sanearia qualquer dúvida sobre a capacidade de atuação das bets neste momento.
Então essa foi a sugestão dada e acreditamos que ela possa ser encaminhada ao Ministério da Fazenda pelas associações e institutos que já atuam em favor da indústria dos jogos no Brasil, em função da legitimidade e da representatividade.
Dito isso, vamos aproveitar a oportunidade para fazer alguns pequenos esclarecimentos do ponto de vista jurídico.
O primeiro ponto é que os Estados podem pedir o bloqueio daqueles operadores que não tenham a autorização própria do Estado ou da União Federal. Isso porque se você não tem a autorização de um ou do outro, o operador está, a rigor, enquadrado no famoso Decreto-Lei n. 3.688/41 (art. 51. Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal ...). Ou seja, é preciso uma autorização local ou nacional. Trata-se, portanto, de uma questão de conformidade.
Mais ainda! Se olharmos as legislações no plano estadual, iremos encontrar os dispositivos que determinam aos órgãos estaduais, o bloqueio das atividades de todos aqueles que não tenham a devida autorização legal. Por exemplo, vejamos o §3º do art.2º da Lei n. 12.703/23 do Estado da Paraíba:
Na mesma direção temos o Parágrafo Único do art. 14 do Decreto n. 15.952/22 do Estado do Mato Grosso do Sul:
E para terminar esta ilustração, no Rio de Janeiro temos o Decreto n. 48.806/23, que em seu art. 6º determina:
Por isso dissemos que os Estados atuam legitimamente, não somente por determinação de suas próprias legislações, mas também na preservação de suas receitas, estas advindas da exploração dos seus serviços públicos de loteria.
Outro ponto que sempre vale relembrar é o alcance da competência da União Federal para estabelecer regras de “caráter geral” sobre a exploração do serviço público em foco.
A Decisão unânime do Supremo Tribunal Federal – STF em setembro de 2020 confirmou o entendimento que não cabe à União Federal o monopólio ou qualquer reserva de mercado com relação aos serviços públicos de loterias, nem determinar aos demais entes da Federação como eles irão explorar o serviço do qual são titulares.
Isto está cristalino no acórdão do Min. Gilmar Mendes, como também está cristalino que cada ente da Federação possui sua autonomia administrativa sobre seu serviço público. Tal assertiva aparece repetidas vezes ao longo do referido Acórdão, mas como o tema ainda parece desconhecido para muitos, vejamos o seguinte trecho da decisão:
“(...) Isso porque o art. 22, XX, da Constituição confere competência privativa da União apenas para legislar sobre a matéria. Sendo a competência prevista apenas formal, a esse dispositivo não se pode conferir interpretação estendida para também gerar uma competência material exclusiva do ente federativo, que não consta do rol taxativo previsto no art. 21 da Constituição”. Em linhas mais simples, aquilo que for tratado em lei federal como serviço público de loteria, caberá aos demais entes aprofundarem os respectivos modelos de exploração.
Daí que o mesmo Ministro arremata:
“(...) Tais normas estaduais, sejam leis ou decretos, apenas ofenderiam a Constituição Federal caso instituíssem disciplina ou modalidade de loteria não prevista pela própria União para si mesma, haja vista que, nesta hipótese, a legislação estadual afastar-se-ia de seu caráter materializador do serviço público de que o Estado (ou município, ou Distrito Federal) é titular, isto sim incompatível com o art. 22, XX, da CF/88” (grifo nosso).
Os Estados, em síntese, podem explorar as mesmas modalidades da União Federal, assegurando uma simetria de oportunidades e cada qual poderá escolher o modo de execução dos seus serviços de loterias (competência material).
Isso significa que cabe aos entes federativos em tela escolher desde o modelo de seleção da delegação, o resultado dessa seleção, a compensação que irão cobrar por delegar um serviço de sua titularidade, a regulação da exploração do serviço em suas jurisdições e todas as demais atividades (incluindo periféricas) que irão influenciar na performance do respectivo serviço público de loterias.
Tudo isso é consequência do arranjo federativo, que é, por sua vez, cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CR/88) e tem a supracitada proibição de intervenção (art. 34 da CR/88) como um dos seus pilares. Daí que para assegurar tal arranjo político e administrativo, somente a própria Constituição estabelece um rol taxativo em que é permitido a União Federal buscar intervir nos Estados.
Isso também significa que não pode haver intervenção por via indireta (vide, por exemplo: IF 114, rel. min. Néri da Silveira, j. 13-3-1991, P, DJ de 27-9-1996 ou ACO 3427 MC-Ref, rel. Edson Fachin, j. 24-09-2020, P, DJE de 14-12-2020). Em resumo, um ente federativo não pode regular os serviços públicos um dos outros.
Portanto, nos parece que cabe ao Ministério da Fazenda a competência para autorizar expressamente e em caráter geral, mesmo que momentaneamente, o exercício da exploração do seu serviço público relacionado à exploração das apostas de quota fixa, através de uma portaria, permitindo a pacificação do entendimento sobre as atividades dos atuais operadores em todo território nacional.
Marcello Corrêa
Especialista em relações governamentais, advogado e mestre em Ciência Política. 1º. vice-presidente da Comissão Especial de Esportes, Loterias e Entretenimento da OAB-RJ; Integrante da Comissão dos Jogos da OAB-DF; Consultor da Axis Veritas Consultoria; e ex-diretor Jurídico da Loteria do Estado do Rio de Janeiro.