Depois de driblar regras federais e entendimento judicial ao credenciar, no estado, casas de apostas que podem operar em todo Brasil (e não só no Rio de Janeiro), a Loterj tem lançado mão de várias ações de pressão neste mercado bilionário.
O Rio notificou casas de apostas – contra as quais abriu processos administrativos – e também pressionou empresas e clubes de futebol cariocas que têm bets como patrocinadores pela adesão ao credenciamento no estado. Até influenciadores foram notificados por protagonizar anúncios de casas não cadastradas no estado.
O governo Claudio Castro (PL) ainda avança na esfera judicial. Na semana passada, conseguiu decisão na Justiça Federal para que a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) determine o bloqueio no Rio de todos os sites de apostas não legalizados pela Loterj – atualmente, cinco empresas estão liberadas no estado.
A decisão, de 2 de julho, foi do desembargador Pablo Zuniga Dourado, do TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, em recurso da Loterj após pedido negado em instância inferior.
A Anatel já notificou as operadoras de internet sobre o bloqueio. Segundo informações do mercado, a ação pode afetar 300 sites, mas ainda não houve derrubadas.
A medida causa controvérsias. É permitido que estados tenham loterias e credencie bets, mas cabe ao governo federal a regulamentação e a da legislação geral do mercado.
Enquanto o processo federal não termina, está assentado que os sites podem operar mesmo sem credenciamento – o que tem ocorrido desde 2018, após aprovação de uma lei no Congresso que fez disparar a proliferação desse tipo de negócio.
No ano passado, os gastos de brasileiros com jogos e apostas online atingiram cerca de R$ 54 bilhões.
O Ministério da Fazenda comanda o processo. O prazo para cadastro está aberto, e, segundo as regras publicadas, as bets podem atuar em todo o território nacional até 31 de dezembro de 2024 mesmo sem credenciamento.
A ANJL – Associação Nacional de Jogos e Loterias, que representa operadoras de jogo, diz em nota que a decisão já impacta as casas de aposta e traz "enorme insegurança jurídica ao setor". A entidade ressalta que o processo de regulamentação federal está em andamento.
"[A decisão e o bloqueio] foram baseados exclusivamente nos argumentos de uma autarquia estadual, a partir de uma interpretação equivocada da legislação, que não condiz com as leis federais”.
Representantes das empresas se dividem sobre os efeitos práticos: por um lado, acreditam que a decisão pode ser inócua porque as determinações de bloqueio não conseguiriam chegar aos acesso por celular; por outro, temem que pode resultar em derrubada em todo o país, não só no Rio.
A Loterj insiste que atua na legalidade e na defesa dos interesses do estado na busca de maior arrecadação. A loteria carioca está disposta a chegar até as últimas instâncias judiciais em busca de mais espaço nesse mercado, inclusive se as disputas chegarem ao STF – Supremo Tribunal Federal.
Essa ação teve como alvo a Anatel, que, em nota, diz ter cumprido determinação judicial e não comentaria o mérito. O presidente da Loterj, Hazenclever Lopes Cançado, disse à Folha que pretende processar diretamente as empresas.
"Pode ser que a União não possa mandar tirar do ar quem ainda não está credenciado porque foi inerte [com a demora no processo], mas no Rio podemos. Porque temos a regulamentação", diz ele. "Estamos tentando coibir concorrência desleal com quem opera legal".
Cançado defende que outros estados que já têm loterias regularizadas poderiam também exigir que só as credenciadas no estado possam operar no território. Além do Rio, Paraná, Minas, Paraíba e Maranhão construíram seus arcabouços legais. "A briga não é por licença, é para não pagar imposto", diz ele, referindo-se ao fato de que, enquanto a regulação federal não termina, as casas de aposta atuam sem pagar impostos ou taxas.
O presidente da Loterj admite que o objetivo da pressão é buscar mais credenciados e aumentar a arrecadação para o Rio. Ele diz que outras empresas procuraram o estado após a decisão do TRF-1.
Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que os estados podem regulamentar seus mercados de apostas para seus respectivos territórios, mas precisam estar submetidos à lei federal. "A regulamentação para âmbito nacional é exclusiva do Ministério da Fazenda, por meio de sua Secretaria de Prêmios e Apostas, como se lê em diversos dispositivos das leis", diz a nota.
A pasta também questiona as regras da Loterj que abriram brecha para que uma bet credenciada no estado possa receber apostas de qualquer lugar do país. "Um estado não está autorizado à prestação desse serviço fora de seu território. Isso seria um descumprimento da lei e da própria lógica federativa”.
Mas, além de um ofício enviado ao governo do Rio e conversas com integrantes do governo carioca, a gestão Lula não tomou outra medida.
O processo de regulamentação federal começou no meio do ano passado, quando o governo federal editou uma medida provisória (que depois resultou em lei), com as linhas gerais para o credenciamento e regras de tributação.
O Rio já havia lançado em abril de 2023 um edital para credenciar as empresas no estado. Mas, um dia depois da medida provisória federal, fez uma retificação no edital e passou a prever que as bets precisariam só informar que as operações são efetivadas no estado, sem travas de geolocalização – permitindo, assim, apostas de todo o país.
Por causa dessa retificação, mesmo feita após a medida provisória, o governo do Rio insiste que tem a liberação – única no país – para credenciar casas de atuação nacional.
Para se credenciar no Rio, as empresas pagam uma outorga de R$ 5 milhões, além de percentuais sobre as apostas. No processo federal, esse valor é de R$ 30 milhões.
Na investida contra os não credenciados, a Loterj também notificou empresas de meio de pagamento (que fazem as operações financeiras) das casas de apostas e encaminhou denúncia ao Banco Central.
A Loteria do Rio fez uma licitação, cercada de questionamentos, para escolher uma única empresa para operar os pagamentos de todos os sites cadastrados no estado. O certame desclassificou uma concorrente que propôs mais recursos por um motivo peculiar: a ausência de um zero depois da vírgula, como a Folha revelou.
Havia apenas dois concorrentes. A exigência relacionada a zero depois da vírgula eliminou um deles e entregou o serviço para uma empresa com apenas três anos de existência, histórico de suspeitas em outra concorrência no Paraná e laços políticos pouco transparentes. A Loterj diz não haver irregularidade.
Fonte: Folha