VIE 27 DE DICIEMBRE DE 2024 - 15:43hs.
Rafael Marchetti Marcondes, advogado

Jogo do Tigrinho: banir ou permitir?

Ultimamente só se fala em proibir o Jogo do Tigrinho e impedir influencers de divulgá-lo. O governo não tem condições de alcançar esse intento por falta de recursos e porque não irá convencer as pessoas a pararem de apostar no simpático felino de temática chinesa. Em artigo para o Lei em Campo, o advogado Rafael Marchetti Marcondes indaga se ele deve ser banido ou permitido e responde: “O Brasil tem de regulamentar o iGaming” e com isso fiscalizar o jogo para que o RTP prometido seja cumprido.

Nas últimas semanas só se fala no Jogo do Tigrinho. Enquanto personalidades divulgam irresponsavelmente o jogo como uma forma de se tornar milionário, de se alcançar o sucesso, ou um meio de ascensão social, diariamente são noticiados golpes gigantescos que levam milhares de pessoas a perdas financeiras de difícil reparação. Para atrair jogadores, as celebridades fazem de tudo, posam com carrões importados, em mansões, exibem maços de dinheiro e tudo o que se pode imaginar em termos de ostentação. Até onde isso vai chegar?

O funcionamento do jogo é simples e não deveria trazer problemas. Trata-se de um jogo de chance com temática inspirada no zodíaco chinês. Para jogar o Fortune Tiger (nome original do Jogo do Tigrinho), as pessoas devem se inscrever na plataforma, fazer depósitos em dinheiro e rodar bobinas para apostar na roleta.

Vence a partida quem tiver a sorte de combinar três símbolos nas linhas de pagamento, algo parecido com uma máquina caça níquel. Segundo os sites que disponibilizam o Jogo do Tigrinho, seu RTP (return to player) costuma ser superior a 95%. Isto é, teoricamente, esse percentual indica a probabilidade de o jogador ter retorno do dinheiro apostado.

Digo teoricamente pois hoje no país não há verificação dos RNGs (randon number generators) – dispositivos responsáveis pela aleatoriedade dos jogos – das plataformas que disponibilizam o Jogo do Tigrinho nem dos jogos que seguem a mesma lógica como o Fortune Rabbit (jogo do coelho), o Fortune Mouse (jogo do rato), o Fortune Gods (jogo dos deuses) e o Fortune Ox (jogo do boi).

Em países que regulam o iGaming, como é conhecida essa modalidade de jogo, todas as plataformas, para oferecerem um produto desse gênero, passam por uma certificação de um laboratório internacional a fim de ser assegurado que os resultados são, de fato, randômicos e que não existe manipulação por parte do operador. Avalia-se e certifica-se a idoneidade do RNG.

No Brasil, entretanto, isso não acontece. O motivo é simples, apesar de presente em todos os cantos do país e oferecido por diversas plataformas que operam offshore, não há qualquer regulamentação a respeito. Proliferam-se plataformas irresponsáveis que direcionam seus jogos a menores e manipulam os resultados, de forma a restringir, ou até mesmo impedir, que o jogador possa sair-se vencedor em um jogo de chance. O resultado é manipulado de forma que o jogador só perca e a casa apenas ganhe.

Do jeito como as coisas estão hoje no Brasil, não se tem segurança se uma plataforma que oferece o Jogo do Tigrinho ou semelhante teve seu RNG certificado ou mesmo se tem o RNG de forma a assegurar a aleatoriedade do jogo.

Os jogos eletrônicos conhecidos como iGaming, aliás, são proibidos no território nacional, mas oferecidos a brasileiros a partir de sites hospedados em países estrangeiros que permitem essa modalidade de jogo. Uma loucura, não?

Como o Brasil seria capaz de punir empresas que se encontram fora dos seus limites territoriais? Simplesmente não pode, lhe falta competência. Pode-se tentar evitar a divulgação desse tipo de jogo? Sim, certamente é possível. Agora, se será eficaz essa tentativa de conter a divulgação do Tigrinho e suas variantes, tenho minhas dúvidas. Trata-se de uma prática que se expande de boca em boca. As redes sociais ainda podem ser restringidas, mas a divulgação corre, e muito, por meio de mensagens privadas e grupos fechados. É praticamente correr atrás do rabo. Inviável.

E como chegamos a essa situação? Vale uma breve retrospectiva dos fatos. Em 2018, com a legalização das apostas esportivas por meio da Lei 13.756, casas de apostas foram autorizadas a explorar as apostas esportivas no Brasil, ainda que aqui não pudessem se instalar por ausência de regulamentação. A demora do Governo Federal em providenciar a regulamentação (já se passaram mais de 5 anos – 4 anos da gestão Bolsonaro e caminhamos para 1 ano da gestão Lula) gerou uma expansão descontrolada dessa atividade.

A reboque da aposta esportiva, veio o iGaming. Internacionalmente é comum que as mesmas plataformas que oferecem apostas esportivas ofereçam o iGaming. Isso começou a ser feito no Brasil sem que as autoridades públicas contivessem o problema que estava por vir. Hoje apostas e iGaming formam um mercado bilionário. Estima-se que a movimentação financeira dos operadores no ano de 2024 supere os R$ 15 bilhões. O mercado é gigantesco e, como disse anteriormente, está descontrolado pela omissão do Governo Federal, especialmente na gestão passada.

Muitos falam, especialmente depois de seguidas denúncias de golpes aplicados à população em proibir o jogo e mesmo a atividade (iGaming). Essa medida, por mais que pareça o caminho mais rápido de se acabar com os crimes que são performados a partir da internet, não vai resolver o problema. Afinal, o jogo já é proibido. Reforçar essa proibição não vai levar a lugar nenhum, até porque, na prática, já temos visto todos os dias que mesmo proibido, esse jogo continua na boca do povo.

Outros dirão que então é preciso reprimir, fiscalizar e assegurar que as punições serão aplicadas e cumpridas. Novamente, não entendo que esse seja o caminho mais eficiente.  Esse é um caminho que requer pessoal qualificado e investimento em equipamentos. Recursos humanos e tecnológicos são caros. Ainda assim, o país estaria de mãos atadas, pois como disse, essas plataformas não ficam no Brasil, mas no exterior.

A alternativa viável é uma só. Reconhecer a existência desse problema e tratá-lo, ao invés de simplesmente repudiá-lo. O Brasil tem é que regulamentar a atividade de iGaming, somente assim, trazendo a atividade para a legalidade e estabelecendo diretrizes é que o Governo Federal poderá fazer com que plataformas sérias se instalem no Brasil, permitindo uma adequada fiscalização e controle. Somente com a legalização o país irá conseguir obter recursos com o iGaming para investir na qualificação do pessoal e tecnologias de monitoramento para checar a existência e o funcionamento dos RNGs das plataformas.

O jogo não é fácil, e para pularmos de fase, a jogada inicial é regulamentar. O Projeto de Lei 3626/23 propõe a regulamentação das apostas e do iGaming. Regular somente apostas e deixar para depois o iGaming é ignorar um problema presente, é ser conivente com os golpes, que seguirão sendo dados, é se omitir para os problemas que jogos como o do Tigrinho, sem o devido controle, podem trazer para a população.

Rafael Marchetti Marcondes
Professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA. Chief Legal Officer no Rei do Pitaco. Presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS). Diretor jurídico do Instituto Brasileiro pelo Jogo Responsável (IBJR). Diretor de relações governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte (ABRADIE).