MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 09:37hs.
Pedro Tengrouse, advogado

"O Brasil tem 400 milhões de dispositivos eletrônicos que são cassinos potenciais"

O advogado e especialista do setor de jogos Pedro Trengrouse, um dos mais renomados profissionais do segmento, com títulos e cursos mundialmente reconhecidos, concedeu entrevista à Gaúcha Zero Hora. Nela, defende a regulamentação, que demora para sair “porque estamos voando às cegas” e indica que o Brasil tem mais de 400 milhões de dispositivos eletrônicos que são cassinos potenciais.

GZH - Qual é a situação jurídica das apostas esportivas hoje no Brasil?
Pedro Tengrouse -
Hoje, não há qualquer restrição a anúncios em meios de comunicação, a meios de pagamento, é uma operação livre no Brasil. A maioria é baseado no Exterior, na ilha de Malta, em Curaçao, em Gibraltar. É difícil regular sem conhecer em profundidade, e olhando a a economia como um todo, não conhecemos a fundo esse segmento. Não temos informações, dados precisos. Há estimativas.

No que a regulação pode ajudar?
Os principais interessados na regulação são o poder público e a sociedade. A regulação precisa focar em três pilares. O primeiro é proteger a economia popular, porque hoje as pessoas apostam e não sabem se receberão seus prêmios. Não sabem de quem cobrar e como se proteger. O segundo é a proteção de pessoas vulneráveis, como os muito jovens ou os que têm ludopatia, ou seja, um transtorno que recomenda evitar exposição ao jogo. E o terceiro pilar que só a regulação pode proteger é a integridade do esporte.

Você mencionou dificuldade de receber os prêmios, há precedentes?
Sim, em 2017, algumas plataformas quebraram depois de resultados inesperados no Brasileirão. Era preciso pagar mil vezes o valor da aposta, e não havia recursos para isso.

Em integridade esportiva, não estamos mal, considerando a operação Penalidade Máxima?
Não, é um processo global, que afeta todos os esportes. É um fenômeno dos nossos tempos. Esses três pilares que mencionei não são os de interesse prioritário da indústria, são os de interesse prioritário do poder público. Regulação é algo que tem de vir do governo.

É viável proteger quem tem transtorno?
Sim, isso já ocorreu. Uma pessoa que perdeu muito, mas muito dinheiro, reclamou com o regulador de Gibraltar, porque a licença do site era de lá, que a ferramenta deveria tê-lo impedido de seguir apostando, porque era claro que ele tinha um problema com jogo. O regulador investigou, concluiu que a alegação era correta e obrigou o site a devolver o dinheiro do apostador.

Hoje, os sites de apostas atuam com base em brecha legal?
A lei 13.756, de dezembro de 2018, é muito clara, diz que as apostas de cota fixa são permitidas no Brasil. O texto menciona "serviço exclusivo da União", mas como também prevê que pode a operação ser "concedida ou autorizada" pelo Ministério da Fazenda e prevê regulamentação futura, já se entendeu que vai ser concorrencial. Aliás, boa parte desses sites já operava no Brasil antes dessa lei, sob a forma de 'site de palpites' para poder anunciar. A página principal era uma brincadeira sem dinheiro, mas tinha um link para um site de apostas.

Por que a regulação demora tanto?
Porque estamos voando às cegas. Esse é um fenômeno relativamente recente, ninguém tem muita clareza sobre o que se deve fazer. quais as melhores práticas. O Brasil, nesse aspecto, tem a oportunidade de aprender com os erros e os acertos de outros países. Um dos pontos a ser considerado é a Convenção de Macolin (pronuncia-se 'macolã'), que trata de manipulação de resultados de apostas esportivas. Nasceu na União Europeia, mas já tem adesão da Austrália, de Marrocos e de outros países não europeus. É preciso começar a trabalhar essa regulação sob a perspectiva de um marco regulatório internacional padrão. Seria muito positivo buscar essa referência.

Estamos atrasados?
O fenômeno das apostas é muito anterior a 2018. O Brasil inclusive convive há muito tempo com manipulação de jogos por postas e apostas. houve um episódio grave em 2005.

Qual seria o melhor caminho?
Em primeiro lugar, o Brasil deveria aderir à Convenção de Macolin, o que a CBF inclusive já solicitou, em ofício à Presidência da República. É um passo importante para formular uma estratégia nacional robusta e integrada, com o suporte necessário para superar lacunas na legislação existente. Precisamos de uma plataforma nacional de integridade esportiva, e isso está pronto, é só buscar na fonte.

Ainda há muita resistência à regulação?
A história do jogo no Brasil nunca foi definida na democracia. A liberação foi feita por Getulio Vargas, no Estado Novo. Não houve discussão com a sociedade, não houve tecido social permitindo. Foram feitos imensos investimento, o hotel Copacabana Palace foi construído para ser um cassino, o hotel Quitandinha, em Petrópolis, também, como o Grande Hotel de Araxá, o Cassino da Urca. E ainda sob a vigência da Constituição Polaca (apelido da Carta de 1937, por ter inspiração fascista, nas regras da Polônia na época), Eurico Gaspar Dutra proíbe o jogo, também sem discussões (havia uma assembleia nacional constituinte em funcionamento), sem procedimentos além de sua própria convicção. Foram milhares de empregos perdidos. Depois, a Lei Zico, de 1992, liberou os bingos, e uma lei de 2015 criou a Lotex. Foi um procedimento concorrencial na bolsa de valores, as duas principais empresas do mundo assinaram um contrato com o governo federal para explorar com exclusividade, e finalmente o STF determinou que tudo o que a União pode, Estados e municípios podem também. Foi corretíssima, mas havíamos vendido uma exclusividade que não era mais possível.

É preciso estender o debate sobre jogos em geral?
Há um fenômeno global e temos de lidar com isso. O Brasil vem amadurecendo muito em relação ao jogo. Foi aprovado um projeto na Câmara liberando os jogos como um todo, que aguarda manifestação do Senado. É um grande avanço. Talvez seja a primeira vez, em um período democrático, que o Congresso se manifesta em relação ao tema. É preciso tratar do assunto inclusive porque cada um desses sites não se limita a apostas esportivas. Quase todos oferecem jogos de cassino, como roleta e bingo. É só abrir a aba, pronto, lá está o cassino.

Dá para confiar na boa recepção da regulação e, portanto, da tributação dos sites de apostas?
Imposto é imposto, não existe boa aceitação. O governo tributa, e é isso. Quem é taxado não tem de aceitar, tem de pagar. É como se diz, dos impostos e da morte não se escapa. Não é pagamento voluntário, é imposto, como diz o nome. O Brasil tem 400 milhões de dispositivos eletrônicos - celulares, laptops, tablets - com conexão à internet que são 400 milhões de cassinos potenciais. Não há condições de tratar do problema se não regular. Este governo tem sido muito responsável com questões econômicas, tem conseguido grandes conquistas. Aprovou na Câmara a primeira reforma tributária da história em período democrático. Tem a oportunidade de fazer o mesmo em relação ao jogo. É um contrassenso tratar das apostas esportivas de forma dissociada. O que tem nesses sites são cassinos que oferecem também apostas esportivas.

Fonte: GZH