O Brasil é um dos poucos países no qual o mercado de apostas esportivas ainda segue sem operação regulamentada, o que revela uma enorme incoerência já que a legislação pátria o define como um serviço público cuja arquitetura de funcionamento poderia viabilizar interesses sociais relevantes.
Num esforço para disciplinar a matéria, foi recentemente publicada a Lei 14.790/2023 consolidando vários dispositivos legais concernentes à exploração das apostas esportivas e remetendo ao Ministério da Fazenda a responsabilidade para regulamentar a aplicação do disposto em lei.
Ocorre que, inobstante a necessária expedição do aguardado Regulamento da Lei 14.790/2023, de 29 de dezembro de 2023, o Ministério da Fazenda vem atuando (irregularmente) com base no regulamento pretérito advindo da Portaria Normativa MF 1.330/2023, de 26 de outubro de 2023.
De efeito, o próprio site do Ministério da Fazenda divulgou ter promovido reunião na data de 10 de janeiro de 2024 com a SERPRO e “com cerca de 200 representantes de empresas de apostas de quota fixa que manifestaram interesse no prazo estabelecido na Portaria Normativa MF 1.330, de 2023”.
Segundo a notícia, a intenção da reunião era apresentar “as diretrizes para realização de testes” com “o objetivo de preparar os sistemas de apostas para as adaptações necessárias à obtenção da autorização” e fazendo questão de ressaltar que “apenas empresas que manifestaram interesse conforme a Portaria Normativa MF 1.330, de 2023, e que enviaram um e-mail específico para a fase de testes, poderão participar”.
Como se vê, o que se constata da notícia publicada no Gov.br é que o Ministério da Fazenda está materializando aquilo contido nos artigos 26 e 29 da referida portaria ministerial que tratavam da “manifestação prévia de interesse”, cuja redação estabelecia:
Art. 26. As pessoas jurídicas interessadas na outorga de autorização para exploração comercial de apostas de quota fixa no território nacional PODERÃO apresentar manifestação prévia de interesse ao Ministério da Fazenda, no prazo de até trinta dias, contado da publicação desta Portaria.
(...)
Art. 29. As empresas que atenderem integralmente o disposto neste Capítulo TERÃO PRIORIDADE na análise de seus pedidos de autorização para exploração comercial das apostas de quota fixa, quando da abertura do prazo para apresentação do requerimento.
Entretanto, tais procedimentos não detêm substrato legal que os autorize. Isso porque, dentre outros motivos, os dispositivos da Portaria 1.330 que estabeleciam uma ordem prioritária vinculada à “manifestação prévia de interesse” são incompatíveis com a redação da recente Lei 14.790/2023 que determina que a análise dos requerimentos observará a ordem cronológica de seu protocolo, senão vejamos:
Art. 10. O procedimento administrativo de autorização tramitará em meio eletrônico, e, durante sua análise, os autos serão de acesso restrito ao interessado e a seus procuradores.
(...)
§ 2º Ressalvadas as hipóteses de suspensão ou de prorrogação de prazos, em razão de insuficiência, incompletude ou inconsistência da documentação apresentada pela pessoa jurídica interessada, a análise dos requerimentos observará a ordem cronológica de seu protocolo.
Ora, ao considerarmos o regulamento e a lei, devemos entender que esta última ocupa um lugar à parte e de precedência, na imperatividade jurídica. Daí que nenhum ato administrativo (a exemplo das portarias regulamentares) se fará contra texto expresso de lei, em razão do princípio da hierarquia das normas. Em outras palavras, no conflito entre lei e regulamento, prevalece sempre a lei.
De mais a mais, uma reunião para tratar de interesses públicos, mas restrita a uma sorte de particulares, além de não manter conformidade com o texto da recente Lei 14.790/2023, desafia os princípios basilares da administração pública da legalidade, impessoalidade e publicidade (CF/88, artigo 37). Melhor seria que o Ministério optasse por uma audiência pública, aberta a todos os interessados que queiram contribuir para o atingimento das finalidades que a lei se destina.
Ainda assim, devemos registrar o reconhecido esforço do Ministério da Fazenda em regulamentar, da maneira mais célere possível, uma matéria de significativo destaque nacional. E a crítica aqui feita acaba sendo apenas motivada por uma preocupação quanto à validade dos atos e procedimentos executados.
Idêntica preocupação subsiste no tocante à intenção ministerial divulgada em canais de notícias de que “a janela de inscrições [dos pedidos de autorização para funcionamento] deve ser aberta duas vezes ao ano, e ficará aberta por algumas semanas, a companhia que perder o período ou tiver o pedido negado, ficará ilegal no Brasil”.
Aqui, devemos conceber que tal restrição ao procedimento de autorização, se realmente for consumada pelo Ministério da Fazenda, também comprometerá a legalidade dos atos administrativos adotados, considerando que a nova Lei das Bets (artigo 9º) é expressa em fixar a possibilidade do pedido de autorização ser requerido a qualquer tempo pela pessoa jurídica interessada, cabendo portanto ao Ministério assegurar os meios para garantir o cumprimento do comando legal, mantendo permanentemente aberto o procedimento de autorização.
Jhonatas Mendes e Gedecy Medeiros
Advogados e consultores em direito regulatório de jogos lotéricos. Jonathas Mendes é presidente da Comissão de Direito dos Jogos da OAB/MA e Gedecy Medeiros, secretário geral da Comissão.