O Brasil é mesmo um país curioso. Justamente no momento em que se regulamenta e se busca controlar com rigor o que existe no país sem nenhuma fiscalização há quase uma década, as bets se transformaram do dia para a noite nas maiores vilãs da saúde e da economia dos brasileiros.
Enquanto a atividade bilionária operava às sombras, com sedes em paraísos fiscais justamente pela proibição de se estabelecerem por aqui, palavras como ludopatia ou vício em apostas não apareciam na imprensa. Como não era um tema de governo, o problema ficou escondido embaixo do tapete, como se simplesmente não existisse, sem gerar um centavo de imposto.
Bastou o governo fixar regras claras, em trabalho minucioso e competente liderado pelo advogado José Francisco Manssur no Ministério da Fazenda, para a mídia descobrir que os jogos esportivos ou de azar podem viciar.
É o típico caso de descoberta seletiva que periodicamente assola os meios de comunicação. Há pelo menos 7 anos, as bets invadiram TV, rádios e jornais, sem nenhum questionamento. Dá para contar no dedo os jornalistas que se posicionaram contra as apostas.
Antes da artilharia generalizada organizada pela opinião pública, Lula estava de olho no potencial de R$ 3 bilhões de arrecadação. Agora, o ministro Fernando Haddad e o próprio presidente dizem que existe uma epidemia de adictos em apostas e mostram preocupação com algo que é um problema mundial.
Ficam aqui algumas perguntas importantes:
* O governo só enxergou a ludopatia agora?
* Não seria a mídia também responsável pelo aumento do volume de viciados por conta da superexposição das bets?
* Qual será o 1º órgão de imprensa a fazer mea culpa?
A hipocrisia é tamanha que, todos os dias, é possível encontrar reportagens em grandes portais apontando problemas das casas de apostas ladeadas por propagandas de casas de apostas.
Segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo divulgado em março de 2023 e replicado em estudo recente do Banco Itaú, as casas despejaram (ou injetaram) R$ 3,5 bilhões no futebol brasileiro. Como o estudo é anterior à da entrada (e saída) da Vai de Bet no Corinthians, que teve efeito inflacionário em cascata na publicidade de clubes, os números em 2024 devem ultrapassar R$ 4 bilhões.
O 1º patrocínio relevante do setor no futebol brasileiro foi no longínquo dezembro de 2018, no Fortaleza. Sem que o governo de Jair Bolsonaro (PL) agisse para criar regras claras, as bets viraram a principal fonte de patrocínio da maior paixão brasileira.
Dentre os 40 clubes da Série A e B do Campeonato Brasileiro, apenas o Palmeiras e o Cuiabá não estampam uma empresa da indústria. No feminino, porém, o Palmeiras já aderiu. Os dois principais campeonatos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) têm a Betano como detentora dos naming rights.
O investimento em veículos de comunicação também atingiu a cifra dos bilhões. De acordo com o Ibope Monitor, o meio TV aberta concentrou 44% das verbas das bets, com mais de R$ 921 milhões. O total gasto em mídia foi superior a R$ 2,071 bilhões em 2023, número que certamente aumentará em 2024.
Uma crise setorial de imagem, como sabemos, não acontece por acaso. Há interesses enormes de bancos, varejo e outras indústrias para frear os gastos da população nos jogos esportivos. O dinheiro é um só. Quanto mais um setor cresce, menos sobra para os outros.
É evidente que as bets devem rever alguns conceitos e efetivamente trabalhar para combater o vício. Hoje, a tecnologia permite o rastreio de contas, o cruzamento de dados. Não me parece razoável que beneficiários do Bolsa Família possam utilizar recursos públicos para apostar. Ou que pessoas com nome sujo possam ver na ilusão do dinheiro fácil forma de resolver suas dívidas. Aposta esportiva é entretenimento, não meio de enriquecer.
Como toda crise, a das bets têm prazo de validade. Uma hora, o assunto cansa. As empresas que efetivamente apoiarem o jogo responsável, limarem de suas bases pessoas vulneráveis e adotarem regras rígidas de compliance e segurança sobreviverão.
No passado, os inimigos da sociedade já foram o cigarro, a cerveja, os bancos, as empreiteiras. O tabaco ainda mata. O álcool segue destruindo famílias, gerando violência. Os juros continuam deixando banqueiros bilionários às custas da miséria de milhões de pessoas. Ninguém em sã consciência pode dizer que a corrupção em obras públicas desapareceu. Apenas uma coisa mudou, a sanha da opinião pública em destruir o vilão da vez. A histeria acaba já já.
Fernando Mello
Jornalista, e especialista em gestão de crises e na indústria esportiva. Graduado na Universidade de São Paulo e pós-graduado em gestão de Esporte, o profissional teve passagem de oito anos como repórter e colunista da Folha de S.Paulo e desde 2004 comanda a agência Press FC. É vice-presidente da Federação Paulista de Futebol e ganhou sete Leões de Cannes em 2019.