MIÉ 23 DE OCTUBRE DE 2024 - 17:42hs.
File de sites quase quadruplicou em um mês

Bets exploram lacunas para manter operação no Brasil por meio da Loterj e vitórias em tribunais

As discussões sobre a regulamentação do iGaming no Brasil têm provocado movimentações poucas vezes vistas em um novo setor econômico. A demora do governo federal em regular a atividade e a ação proativa da Loterj fez com que o setor buscasse, em âmbito local, suas licenças para operar nacionalmente. Hoje, quase 80 empresas esperam autorização no Rio de Janeiro, contra 20 que estavam na fila há um mês.

A tentativa do governo de acelerar o processo de regulamentação do mercado de apostas trouxe à tona lacunas no arcabouço desenhado pelo Congresso, com chancela do Ministério da Fazenda. Ainda antes de o mercado regulado começar a funcionar de fato, no próximo 1º de janeiro, bets já invalidaram decisões da Secretaria de Prêmios e Apostas por meio de recursos nos estados, na Justiça e pela compra de empresas licenciadas.

A consequência mais clara disso foi o salto nos pedidos de licença na Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj). Até 17 de setembro, quando o governo anunciou que bloquearia neste mês os sites que não tivessem solicitado a permissão federal ou detivessem uma licença estadual, havia 20 bets à espera de aprovação no estado. O número subiu para 77 na última sexta (18).

 



A loteria fluminense se movimenta para se firmar como alternativa nacional de licenciamento de bets, sob contestação do governo. A Advocacia-Geral da União (AGU) foi à Justiça para limitar a operação da Loterj ao território fluminense.

A Loterj conseguiu, no dia 1º de agosto, liminar na Justiça Federal do Distrito Federal para operar em todo o país. No dia 5, o governo conseguiu a derrubada da decisão. Contudo, a autarquia fluminense diz que segue a faturar as apostas no Rio de Janeiro e, por isso, estaria em situação de regularidade.

O resultado da disputa judicial da União contra Loterj e as empresas de apostas, segundo advogados consultados pela Folha, vai definir como funcionarão, na realidade, as regras, eleitas pela Fazenda como a principal ferramenta na tentativa de combater a lavagem de dinheiro, a dependência e a propaganda abusiva ligadas às bets.

A AGU afirmou que só vai se pronunciar sobre o assunto nos autos do processo. Nos documentos, o órgão cita um risco de competição predatória entre os entes federados para receber os sites de apostas, caso a União perca no imbróglio contra a estatal fluminense. Nesse cenário, os atores teriam incentivos para aprovar leis e portarias mais lenientes com crimes financeiros para atrair casas de aposta.

A estatal carioca, por exemplo, não requer certidões de "nada consta" de todos os envolvidos na rede societária dos sites de apostas.

O governo, por sua vez, exige documentações de todas as pessoas ligadas às empresas controladoras e controladas pelo CNPJ que deseja receber a outorga. Pede ainda um plano de negócios detalhado, com projeções financeiras e demonstrações contábeis específicas.

Em evento organizado pelo grupo Lide, de João Doria, na última sexta, o presidente da Loterj, Hazenclever Lopes Cançado, afirmou que a Loterj já recebe pedidos de licença de empresas de vários estados e até do exterior. Por isso, vai lutar para garantir que as licenciadas atendam jogadores de todo o país, faturando as apostas no Rio de Janeiro.

"É a mesma lógica dos ecommerces, em que a coleta do imposto ocorre no estado do comerciante", disse Cançado à Folha. A licença da autarquia fluminense teria validade global, como ocorre com as autorizações de Malta, Curaçao e Anjouan, adotadas, na Europa, por exemplo, para fugir de regulações nacionais.

O governo federal, por outro lado, diz que a lei exige, para evitar lavagem de dinheiro, um sistema de georreferenciamento da origem da aposta. Essa tecnologia, adotada no Paraná e no Maranhão, permitiria restringir a atuação das bets licenciadas nos estados aos seus respectivos territórios, como define a lei nº 14.790 de 2023.

Cançado contra-argumenta que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar três ações, garantiu aos estados o direito de concorrer com a União, até no âmbito regulamentar. Para ele, a atuação do governo contra a autarquia carioca visa concentrar a arrecadação das apostas, dando prosseguimento ao histórico de monopólio dos jogos pela Caixa Econômica Federal.

No setor, porém, prevalece a avaliação de que há uma diferença de abordagem entre a Fazenda e a Loterj.

Empresários do ramo avaliam que das mais de 200 empresas que pediram permissão para atuar com apostas, uma ou duas dezenas devem suportar as regras federais e a competição no longo prazo.

A loteria fluminense, por sua vez, deve licenciar mais de 50 empresas, operantes em um cenário menos complexo e mais inclinado a deixar as questões criminais sob os cuidados da polícia. Funcionários da própria Loterj dizem, reservadamente, que a orientação dos superiores é de aprovar os pedidos, desde que requisitos mínimos sejam atendidos —11 empresas até agora falharam por não conseguirem entregar a papelada exigida e 12 já têm permissão.

A Fazenda diz que a emissão de autorizações e posterior fiscalização em cada estado é de responsabilidade da autoridade local.

Em um terceiro fronte de conflito judicial para a União, diversos setores da economia tentam invalidar, em uma ação no STF, a lei que regulamentou o mercado de apostas. Isso, por si, não jogaria as bets na ilegalidade.

A AGU alertou, em petição destinada ao ministro responsável pela causa, Luiz Fux, sobre o risco de o Brasil seguir como sede do atual mercado cinzento de apostas, se o STF acatar o pedido da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo para invalidar a regulação.

O correto, diz a instituição, seria invalidar a lei sancionada por Michel Temer que liberou as plataformas de apostas no fim de 2018.

Fonte: Folha