DOM 24 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 22:32hs.
Udo Seckelmann e Pedro Heitor de Araújo, Bichara e Motta Advogados

O inimigo não é a aposta, mas a falta de regulamentação

O setor de iGaming brasileiro vem sendo motivo de ataques de todos os lados e sendo acusado de males para os quais as empresas que buscam se regular no país não contribuíram. Udo Seckelmann e Pedro Heitor de Araújo, do Bichara e Motta Advogados, analisam em artigo para o Poder360 o atual momento da atividade e apontam que informações deturpadas desviam o foco da importância de uma regulamentação robusta e de acordo com as melhores práticas internacionais.

Nos últimos meses, as apostas se tornaram alvo de intensas críticas na mídia, sendo alegadamente responsáveis por diversos impactos negativos no Brasil, como o superendividamento familiar, a redução do consumo de bens essenciais, o agravamento da situação dos beneficiários do Bolsa Família e, até mesmo, o principal motivador do aumento de divórcios.

No final de setembro, depois de consolidada tal narrativa de abominação da indústria de apostas, a CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7721 no Supremo Tribunal Federal, visando à inconstitucionalidade da Lei 14.790/2023, conhecida como Lei das Apostas de Quota-Fixa, com base em conjecturas sobre os efeitos das apostas na ordem econômica, social e de saúde pública, o que prejudicaria, especialmente, as classes sociais mais vulneráveis.

Em síntese, a narrativa anti-bets mudou de direcionamento drasticamente no último mês. O discurso que antes focava na importância de regulamentar a atividade de apostas para proteger os consumidores passou a defender a proibição integral da atividade novamente, como se tal medida extrema fosse resolver todos os problemas suscitados anteriormente. 

Pelo contrário: os brasileiros já apostavam online antes da legalização da atividade em 2018. O que vai acontecer é o que já existia antes (e ainda persiste): consumidores brasileiros apostando em sites de apostas ilegais e não regulamentados em nenhum país, o que só vai gradativamente aumentando os impactos negativos da atividade que hoje imperam.

É necessário, primeiramente, questionar até que ponto essas críticas são realmente fundamentadas ou se só refletem uma retórica que distorce os fatos, objetivando puramente desgastar a imagem da indústria de apostas para beneficiar interesses econômicos de outros setores.

Muitas dessas críticas, baseadas em percepções frágeis, carecem de uma análise mais objetiva, visto o bombardeio de informações divulgadas nos mais diversos meios de comunicação. O problema central não está na natureza das apostas em si, mas na ausência (e na demora) de uma regulamentação sobre a atividade.

A inércia estatal

A promulgação da Lei 13.756/2018, que legalizou as apostas esportivas no Brasil, provocou uma mudança profunda nas dinâmicas de consumo no setor de entretenimento. De lá para cá, o mercado cresceu exponencialmente, atraindo uma ampla parcela da população a apostar.

No entanto, o que muitas vezes não é divulgado, ou ressaltado como deveria, é o limbo de mais de seis anos que tivemos entre a legalização da atividade em dezembro de 2018 e o início do mercado regulamentado a partir de janeiro de 2025.

A legislação de 2018 determinava expressamente um prazo de dois anos, prorrogáveis por mais dois, para a regulamentação da atividade – o que não foi feito. A regulamentação da atividade em tal período extinguiria – ou, ao menos, mitigaria consideravelmente – a grande maioria dos problemas hoje enfrentados.

O Brasil não está inventando a roda ao legalizar as apostas. Dos 38 países da OCDE, apenas a Islândia não legalizou as apostas. Do G20, só o Brasil, além da Arábia Saudita e da Indonésia, que são países muçulmanos, ainda não legalizaram/regulamentaram as apostas. É improvável que esteja o mundo inteiro errado e o Brasil certo em manter tal atividade econômica na ilegalidade.

Proibir a atividade no Brasil não vai solucionar os problemas que hoje são suscitados. Muito pelo contrário; as pessoas públicas que hoje defendem a proteção da economia popular e o tratamento das pessoas que sofrem com vício em apostas sumirão magicamente e farão o que fizeram durante todas as últimas décadas de jogo proibido: jogarão a poeira para debaixo do tapete e ignorarão quem são, quantos são e onde estão os vulneráveis que sofrem com transtornos compulsivos ligados a apostas. 

Se não houve uma atitude ampla, concreta e eficaz para assistência e tratamento de tais vulneráveis durante as últimas décadas de jogo proibido, parece ser bastante improvável que eventual nova proibição resultará em formas de proteção a tais consumidores.

Regulamentação para separar o jogo do trigo

Regulamentar é trazer à luz o que hoje opera nas sombras, promovendo mais responsabilidade e transparência. O período sem regulamentação escancarou um fato: existem, sim, operadores de apostas maliciosos cuja intenção é explorar ao máximo os consumidores brasileiros, não obter uma licença no Brasil e continuar operando nas sombras. Para estes operadores, quanto mais tempo a atividade for proibida ou não regulamentada, melhor.

Por outro lado, existem inúmeros operadores sérios, que são regulamentados em diversas jurisdições e se submetem a um arcabouço legal e a uma fiscalização rigorosa de reguladores mundo afora para operar dentro das regras.

Esses operadores são interessados em obter uma licença no Brasil, cumprir as exigências regulatórias e impedir que “operadores aventureiros” e não regulamentados continuem explorando a atividade às custas dos consumidores brasileiros e manchem a reputação da indústria como um todo.

Não é porque Odebrecht, HSBC e Alstom foram condenadas por lavagem de dinheiro que devemos proibir empresas dos setores de engenharia/construção civil, serviços financeiros e infraestrutura de energia/transporte de existirem ou explorarem tais atividades. Todo setor tem empresas que mancham a reputação de toda uma indústria, mas não podemos acreditar na narrativa de que todas são assim.

Com a regulamentação das apostas de quota-fixa a partir de 1º de janeiro de 2025, o Brasil atravessa um período de adequação, conforme estabelecido pela Portaria SPA/MF 1.475 de 2024. 

A materialização dessa atividade ao arcabouço regulamentar introduz uma série de normas voltadas à proteção do consumidor e à promoção do interesse social. Tais medidas incluem certificação das plataformas e jogos oferecidos, limites prudenciais para apostas, programas de autoexclusão para apostadores em risco, educação sobre jogo responsável, além de monitoramento contínuo para impedir a participação de menores de idade em apostas.

Educação aos consumidores e jogo responsável

Grande parte dos problemas hoje enfrentados seriam consideravelmente mitigados com educação – o que é englobado nas diretrizes de jogo responsável estabelecidas nas portarias da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. 

Por ser uma atividade econômica relativamente nova, vários mitos devem ser desmistificados e a realidade sobre a atividade deve ser amplamente divulgada. Depois, estando a população devidamente alertada sobre a atividade e os potenciais malefícios atrelados a esta, as pessoas devem ter liberdade para escolher apostar ou não.

Anote em negrito e caixa alta: APOSTA É ENTRETENIMENTO. A publicidade dos operadores de apostas regulamentados jamais poderá divulgar apostas como sendo forma de investimento, fonte de renda ou enriquecimento pessoal. Caso o faça, será sancionado por meio de processo administrativo, conforme determinado na Lei 14.790/2023. 

Por tal razão, as portarias da Secretaria de Apostas já determinam as diretrizes para jogo responsável e publicidade do setor, as quais buscaram inspiração em outras jurisdições que já regulamentaram a atividade. Importante destacar que influenciadores que divulgam operadores de apostas devem igualmente observar tais regras e diretrizes da SPA sobre jogo responsável e publicidade, sob pena de serem sancionados também.

Proibir uma atividade é o caminho mais fácil para discursos populistas; educar a população e implementar políticas de conscientização é mais difícil. Talvez, por isso, o discurso tenha mudado tão abruptamente.

A ilusão dos números

Os estudos recentes sobre o impacto das apostas no consumo e na economia devem ser analisados com maior cautela, pois se baseiam em projeções especulativas e dados incompletos, resultando em narrativas que distorcem a real dimensão do mercado de apostas no Brasil. A falta de regulamentação em vigor compromete a obtenção de dados oficiais, tornando prematuras e imprecisas as estimativas sobre os efeitos econômicos e sociais.

O estudo da CNC, por exemplo, foca apenas no fluxo financeiro direto, sem levar em conta os fundos retidos nas contas gráficas dos apostadores ou os valores retornados como prêmios, criando uma percepção equivocada de que todos os recursos apostados são retirados do consumo, o que não corresponde à realidade.

A pesquisa do Itaú, por sua vez, adota uma abordagem mais adequada, distinguindo o valor total apostado do valor líquido efetivamente gasto, que seria estimado em R$ 23,9 bilhões —significativamente menor do que o valor bruto. Contudo, também não leva em consideração os valores retidos nas contas gráficas dos apostadores nas plataformas de apostas.

O Itaú também demonstra que as vendas do varejo seguem dentro das expectativas macroeconômicas, sem desvios relevantes, indicando que o impacto das apostas no consumo de bens essenciais é muito mais limitado do que sugerido. 

No estudo “O Impacto das Apostas Esportivas no Consumo”, da PwC Brasil e Strategy& Brasil, por exemplo, afirma-se que os operadores retêm uma taxa de 12% do valor apostado à título de GGR (Gross Gaming Revenue), o que é incorreto, pois 1) essa taxa só será aplicada a partir de janeiro de 2025, com a nova regulamentação, e 2) o tributo será de responsabilidade dos operadores, sem repasse aos apostadores. Além disso, a alegação de que “boa parte dos ganhos é reinvestida em novas apostas” carece de evidências empíricas que comprovem tal comportamento no mercado.

Dessa forma, a extrapolação de dados incompletos para concluir sobre inadimplência e perda de poder aquisitivo exemplifica como a ausência de regulamentação transforma conjecturas em “verdades” na opinião pública. Só com a implementação de uma regulamentação robusta será possível obter dados confiáveis que proporcionem uma visão justa e realista dos impactos das apostas na economia brasileira.

Caminho para o desenvolvimento

Uma estrutura regulatória calibrada, como a expedida pela SPA, é a única forma viável de mitigar as preocupações levantadas sobre os possíveis impactos negativos das apostas. 

Regras claras, aliadas a programas eficazes de jogo responsável e uma fiscalização assertiva, não só são capazes de proteger os vulneráveis, como também pavimentam o caminho para o desenvolvimento econômico do setor sem comprometer os interesses sociais. Ao adotar um quadro regulatório sólido, o Brasil pode se posicionar entre as jurisdições que equilibram habilmente o interesse público com o desenvolvimento do mercado. 

A tentativa de suspender preventivamente e declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 14.790/2023, como requerida pela CNC, perpetua o vácuo regulatório que apenas amplificaria os impactos negativos. Em vez de proteger os consumidores, essa lacuna expõe a sociedade a riscos maiores ao manter o poder dos “operadores aventureiros” que preferem viver nas sombras de um mercado ilegal e desregulamentado.

Portanto, o inimigo não é a aposta; é a falta de regulamentação.

Udo Seckelmann
Advogado e head do departamento de Apostas e Cripto do escritório Bichara e Motta Advogados, professor da CBF Academy e mestre em direito desportivo internacional pelo Instituto Superior de Derecho y Economía, em Madri (Espanha).

Pedro Heitor de Araújo
Estudante de direito na PUC-RJ e atua nas áreas de crypto & gambling no Bichara e Motta Advogados desde 2022. Como analista, pesquisador e entusiasta, se dedica às dinâmicas jurídicas relacionadas à regulamentação de criptoativos, DeFi (finanças descentralizadas), apostas e jogos. Fez cursos em DeFi e tokens não fungíveis (NFTs) na Universidade de Nicosia (Chipre).