DOM 24 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 22:54hs.
Rafael Marchetti Marcondes

Varejo e Apostas: Dois lados de uma mesma moeda em saúde financeira e mental

É possível comparar vício em apostas com o consumo desenfreado? Na avaliação do advogado Rafael Marchetti Marcondes, em artigo para o Lei em Campo, sim, com larga vantagem a favor do setor de iGaming, cuja adição é bem menor. A American Gaming Association aponta que entre 1 % e 2% da população sofre de ludopatia, enquanto estudos indicam que cerca de 5,8% dos consumidores americanos enfrentam problemas de transtorno de compra compulsiva.

As apostas e o varejo, embora operem em contextos diferentes, compartilham características comuns que podem gerar efeitos colaterais negativos para a população, tanto em termos de saúde mental quanto financeira. A sociedade frequentemente associa as apostas a riscos de vício e danos econômicos, mas muitas vezes ignora que o setor de varejo pode provocar problemas similares.

Assim, é importante explorar as semelhanças entre ambos os setores, destacando os efeitos colaterais nocivos que eles podem causar, e refletir sobre o papel que o Estado deve desempenhar para mitigar esses impactos, sem cercear as liberdades individuais.

Efeitos nocivos das apostas e do varejo

Apostas e compras podem ser fontes de prazer e entretenimento, mas, quando feitas em excesso, ambas podem desencadear compulsões com graves consequências para o bem-estar mental e financeiro. No caso das apostas, há um consenso sobre os riscos de dependência, com estimativas indicando que entre 1% e 2% da população mundial sofrem de transtorno de jogo patológico. Este vício pode resultar em problemas como endividamento severo, rompimento de relações pessoais e até questões legais.

De forma semelhante, o varejo também pode gerar comportamentos compulsivos, especialmente no contexto de consumo excessivo. Estudos apontam que cerca de 5,8% dos consumidores americanos sofrem de “Compulsive Buying Disorder” (CBD), que é o transtorno de compra compulsiva. Esses indivíduos gastam de maneira descontrolada, o que frequentemente resulta em dívidas altas, uso irresponsável de cartões de crédito e, consequentemente, estresse financeiro.

Um dado alarmante indica que 93% das pessoas com problemas de saúde mental têm mais probabilidade de gastar excessivamente durante crises emocionais. Este comportamento reflete o uso das compras como mecanismo de enfrentamento para sentimentos de ansiedade ou depressão, levando a uma espiral de consumo desnecessário que pode agravar tanto os problemas financeiros quanto os psicológicos.

Eventos de varejo como a Black Friday e grandes promoções contribuem para o consumo desenfreado, onde o apelo publicitário e as facilidades de crédito incentivam as pessoas a gastar além de suas possibilidades. Dados apontam que consumidores americanos gastaram mais de US$ 9 bilhões online apenas durante a Black Friday de 2020, um exemplo claro de como o marketing agressivo do varejo pode levar ao consumo compulsivo.

Os juros cobrados pelos cartões de crédito no Brasil são dos mais altos do mundo, com taxas que podem ultrapassar 300% ao ano. Este fator contribui significativamente para o endividamento da população, visto que muitas pessoas recorrem ao crédito rotativo ou parcelamentos para financiar compras impulsionadas por campanhas de marketing agressivas e promoções. Muitos varejistas oferecem cartões próprios, facilitando o acesso a crédito e fomentando o consumo.

As facilidades oferecidas pelo varejo, como o parcelamento sem juros, muitas vezes mascaram os verdadeiros custos das compras, levando os consumidores a um falso senso de controle financeiro. Quando os clientes não conseguem quitar o valor total da fatura, entram no crédito rotativo, cujas taxas elevadíssimas podem transformar pequenas compras em grandes dívidas. Ainda assim, não se cogita proibir o uso do cartão de crédito no varejo, assim como acaba de ser feito com relação às apostas, mercado no qual o cartão era responsável por menos de 1% do volume das transações realizadas.

Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) – que atualmente pleiteia no Supremo Tribunal Federal a criminalização das apostas –  mostram que, em fevereiro de 2023, 78,3% das famílias brasileiras relataram estar endividadas, e o cartão de crédito foi o principal meio utilizado para essas dívidas. Esses números indicam que o consumo no varejo, quando mal administrado, pode gerar um ciclo de dependência e endividamento profundo, agravando problemas de saúde financeira e mental, até mais nocivos do que os encontrados nas apostas.

Comparação e reflexão

Embora as apostas sejam vistas de maneira mais negativa pela sociedade, é essencial reconhecer que o varejo, com suas práticas de marketing, também pode criar um ambiente de dependência e endividamento. Em ambos os casos, o vício pode resultar em sérias consequências pessoais, incluindo o comprometimento de relações familiares e a deterioração da saúde mental.

A chave para resolver ambos os problemas está na educação e na informação. Os consumidores e jogadores precisam ser conscientizados sobre os riscos envolvidos em suas decisões, seja no ato de comprar ou de apostar.

A regulação governamental deve, principalmente, focar em informar as pessoas sobre os perigos do consumo excessivo e das apostas descontroladas. Dessa forma, o Estado pode criar políticas públicas que protejam os indivíduos, sem interferir diretamente em suas liberdades de escolha. Cabe a cada cidadão, munido de informações adequadas, fazer escolhas responsáveis e conscientes sobre como gastar seu dinheiro, seja em compras ou apostas.

Rafael Marchetti Marcondes
Professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA. Chief Legal Officer no Rei do Pitaco. Presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS). Diretor jurídico do Instituto Brasileiro pelo Jogo Responsável (IBJR). Diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte (ABRADIE).