VIE 13 DE DICIEMBRE DE 2024 - 16:00hs.
Impossível controlar recurso do beneficiário

Governo recorre ao STF e diz não ter meios técnicos para impedir uso do Bolsa Família em bets

A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu nesta quinta (12) da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determina a adoção de ferramentas para impedir que beneficiários do Bolsa Família usem recursos recebidos do programa para apostar nas bets. No pedido, a AGU afirma que o Executivo não tem meios técnicos para proibir esse tipo de gasto, já que não é possível distinguir o dinheiro do benefício de outras rendas recebidas em uma determinada conta bancária.

Além disso, as áreas técnicas ressaltaram que, uma vez repassado o benefício para a conta da família cadastrada, o dinheiro passa a ser do titular, e o poder público perde qualquer influência sobre sua destinação.

A petição foi apresentada em forma de embargos de declaração, instrumento usado para solicitar esclarecimentos a respeito de pontos de uma decisão judicial. Nela, a AGU pede que o STF indique como o governo deve cumprir a determinação da corte, dados os obstáculos elencados, e conceda um "prazo razoável" para a implementação dessas medidas.

A AGU se baseou em argumentos técnicos de dois órgãos do Executivo, a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda e a Senarc (Secretaria Nacional de Renda de Cidadania) do Ministério do Desenvolvimento Social.

A Senarc apontou que a conta bancária de pagamento dos benefícios do Bolsa Família, usada por 99% das famílias contempladas, não é de uso exclusivo do programa e pode movimentar valores oriundos de outras fontes, como o trabalho. Apenas 1% das famílias efetuam o saque integral por meio do cartão do programa.

"Em relação às contas de pagamento do Bolsa Família, apenas 9,67 milhões de responsáveis familiares fazem regularmente Pix a partir da conta de benefício e, em média, fizeram apenas 2,5 operações, com um valor de R$ 355 cada (dados de agosto/2024). Ademais, as mais de 9,67 milhões de famílias que fizeram Pix movimentaram cerca de R$ 8,5 bilhões, mas só receberam R$ 6,5 bilhões do programa, logo, é imprescindível compreender que um eventual bloqueio da conta invade esfera privada, onde o cidadão movimenta outras rendas", diz o documento.

Na peça, a AGU afirma que não pretende rediscutir a decisão ou manifestar discordância quanto a ela, mas sanar dúvidas sobre seu conteúdo. O voto do relator, ministro Luiz Fux, foi referendado de forma unânime pela corte.

"Conquanto louvável e necessária a preocupação com a situação econômica de indivíduos e famílias vulneráveis, a adoção de ‘medidas imediatas’ encontra barreiras de ordem prática de difícil superação, razão pela qual faz-se imprescindível o aclaramento do acórdão recorrido", diz a AGU.

O órgão jurídico também pede esclarecimentos sobre outros pontos da decisão judicial que, na avaliação do governo, geraram confusão. Um deles é a expressão "congêneres", no trecho em que o Supremo determina a adoção de medidas imediatas para impedir o gasto em apostas com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais; "como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres".

A AGU questiona se isso significa que a decisão extrapola Bolsa Família e BPC alcança outros benefícios federais e também os programas de transferência de renda mantidos pelos estados —sobretudo diante do fato de que eles também estão autorizados a explorar a modalidade de apostas.

O governo também pediu que o STF indique se, pela decisão, os estados estão igualmente obrigados a observar as regulamentações do Ministério da Fazenda referentes à exploração comercial da modalidade loteria de aposta de quota fixa, o que inclui regras de funcionamento, fiscalização e publicidade.

Na decisão, Fux havia determinado a entrada em vigor, de forma imediata, de medidas que proíbam a publicidade e propaganda das bets que tenham crianças e adolescentes como público-alvo. A decisão foi submetida à apreciação do colegiado em 14 de novembro e foi referendada pelos outros dez magistrados.

"Verifica-se que o atual cenário de evidente proteção insuficiente, com efeitos imediatos deletérios, sobretudo em crianças, adolescentes e nos orçamentos familiares de beneficiários de programas assistenciais, configura manifesto 'periculum in mora' (perigo na demora), que deve ser afastado de imediato", disse o ministro na ocasião.

O tema é discutido em uma ação da Confederação Nacional do Comércio (CNC). A entidade questiona a constitucionalidade da lei aprovada pelo Congresso Nacional em 2023 que regulamenta as casas de apostas esportivas, com o argumento de que a legislação não consegue proteger as famílias do risco de prejuízos financeiros das apostas.

Educação financeira

Considerado um dos pais do Bolsa Família, o economista Ricardo Paes de Barros afirma à Folha que a maior penetração das apostas esportivas, chamadas bets, não é um problema apenas das famílias mais pobres, mas de toda a sociedade brasileira.

Segundo ele, tutelar os beneficiários do programa social e suas escolhas de consumo não vai resolver o problema, que só terá solução com regulação mais robusta das apostas para limitar sua propaganda e ações de educação financeira para a população.

"A gente está dando para os pobres brasileiros a liberdade deles escolherem com o que eles querem gastar. E eu acho que isso deve ser a maneira correta de fazer as coisas", diz Paes de Barros.

"Em vez de cercear as alternativas do pobre e focar no que o cara pode ou não pode fazer com o dinheiro dele, eu trataria disso [regulação das apostas]. O Brasil precisa saber se isso pode ou não pode, ou quais são os limites dessa coisa", acrescenta.

O economista sugere que a educação financeira se torne condicionalidade para beneficiários de programas sociais do governo.

Fonte: Folha