Desde a publicação da Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, que regulamenta as apostas de quota fixa e os jogos [de fortuna] online, paira uma recorrente dúvida a respeito da classificação de jogo online e de quais modalidades poderão ser operadas no Brasil pós-regulamentação. Em meio a essa incerteza, é importante elucidar e simplificar a análise da licitude de uma modalidade frente ao que a regulamentação prevê.
Isto porque o legislador brasileiro, ao redigir a lei nº 14.790, de 2023, optou por não segmentar e legalizar modalidades específicas de jogos de fortuna online. Por outro lado, definiu parâmetros e requisitos aos quais os jogos de fortuna online devem se adequar para serem certificados e autorizados para distribuição no país.
As modalidades de jogos lícitas serão aquelas que cumprirem os requisitos apresentados na lei e, eventualmente, em futuras portarias, além de terem de ser, obrigatoriamente, operados em meio virtual.
1. Todos os jogos online precisam apresentar suas quotas fixas
Primeiramente, é importante identificar a essência da regulamentação do setor de apostas e jogos online: a quota fixa é requisito fundamental de toda e qualquer modalidade a ser ofertada no ambiente regulamentado. Em qualquer opção de aposta ou de jogo online, no momento de efetivação do ingresso, é apresentado ao usuário o fator de multiplicação do valor apostado em caso de acerto do prognóstico e consequente premiação (Lei nº 13.756 – Art. 29, § 1º; Lei nº 14.790, art. 2º, inciso II).
Na prática, em um jogo de slots apto a ser operado no Brasil, o operador deve demonstrar, na interface e nas regras do jogo, o fator de multiplicação correspondente a cada uma das combinações vencedoras possíveis, a quota fixa para cada sequência premiável. Quando ingressar no jogo, o usuário deve ser informado e a ele disponibilizado um “gabarito” com quanto será pago por cada uma das combinações, a saber também o ganho máximo e o ganho mínimo, de acordo com cada sequência.
Nos crash games, a quota fixa é de mais fácil identificação no evento de jogo online. Em regra, a operadora define apenas os valores mínimos e máximos que o algoritmo pode alcançar em cada rodada, que são fixados como regra do jogo – ex: a dinâmica do jogo começa em 1.01x e alcança até 999x. Já a quota fixa em si, nessa modalidade, pode ser escolhida pelo próprio usuário, ao definir o fator multiplicador de auto retirada (auto cashout) – o multiplicador máximo e referencial de quanto o jogador pode ganhar em caso de acerto de prognóstico.
Em um crash game padrão, ou o jogador fixa a auto retirada em um valor do seu interesse, ou adota o valor referencial máximo do jogo como quota fixa, que são multiplicadores de “quanto o apostador pode ganhar”, do potencial de ganho do jogador, conforme o art. 29, § 1º, da Lei nº 13.756, de 2018. No entanto, no curso da dinâmica do jogo, o jogador pode optar por se retirar de maneira antecipada e, eventualmente, auferir um valor menor do que a quota fixa, sem desqualificar o fato de que o usuário sabia e foi informado do máximo que poderia ganhar ao realizar a aposta.
Na hipótese em que o jogador escolha o multiplicador de auto cashout em 25.0x, por exemplo, a quota fixa (potencial de ganho máximo) está definida nesse valor, ou seja, o ganho potencial do jogador na rodada. Se, na dinâmica do jogo, o usuário entende que o multiplicador atingiu um valor satisfatório, ainda menor do que o referencial escolhido, e decidiu se retirar aos 10.5x, por exemplo, essa opção do jogador não altera o fato de que a quota fixa definida para aquela rodada era de 25.0x.
Caso haja preocupações mais profundas em relação à identificação da quota fixa em jogos de crash, para fins de maior segurança frente à regulamentação, o operador pode adequar a modalidade para que a escolha de um multiplicador de auto cashout seja obrigatória ao usuário no momento de ingresso no jogo. Essa seria uma maneira de reforçar a presença de uma quota fixa definida pelo próprio jogador, mesmo que o valor máximo de ganhos também já esteja disposto nas regras e possa ser identificado como a quota fixa do jogo.
2. O resultado do jogo precisa decorrer de um Gerador Randômico de Números, de símbolos, de figuras ou de objetos
O segundo requisito representa um dos elementos mais significativos e importantes para a indústria de jogos online, que é a aleatoriedade ou imprevisibilidade do resultado da rodada ou do evento de jogo, garantida por um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos, conforme o art. 2º, inciso VIII, da Lei nº 14.790, de 2023.
Essa aleatoriedade é um dos princípios basilares do contrato de jogo desde sua origem, quando se operava a atividade em meio presencial, ou até alheia a componentes tecnológicos, e ganhou mais notoriedade com a aplicação da regulação técnica no setor de jogos.
A conduta regulatória e o objetivo que permeia esse requisito estão alocados na necessidade de que o resultado dos jogos seja efetivamente imprevisível e completamente independente de interferências ou influências externas em sua dinâmica e no próprio resultado. Esse requisito é inerente até ao entretenimento do jogo, pois a previsibilidade ou definição prévia do resultado retiram a emoção do jogo de fortuna, quando se espera a “intervenção da sorte”.
A maioria dos jogos de fortuna online operados na atualidade funciona a partir de um Pseudo-Random Number Generator (PRNG), pois um Random Number Generator (RNG) puro ainda encontra barreiras de desenvolvimento tecnológico.
O largamente utilizado PRNG pode ser descrito como um algoritmo determinístico computacional que não exerce um evento puramente randômico, mas que demonstra aleatoriedade o suficiente em seus resultados, a ponto de ser aprovado nos testes e parâmetros da indústria para se classificar um jogo como efetivamente randômico, os quais dispõem de aceitabilidade tanto por reguladores de outras jurisdições, quanto por entidades internacionais de autorregulação.
O Pseudo-Random Number Generator utilizado nos jogos de fortuna online precisa de elementos que assegure maior segurança e confiabilidade no resultado, principalmente em razão da possibilidade de interferência externa por meio de invasões ou de hackers.
Com isso, os jogos de fortuna comumente estão resguardados por uma forte criptografia em sua dinâmica e apresentação do resultado, o que significa que esses softwares se tornam mais resistentes a ataques com o objetivo de manipular o resultado ou detectar a limitação técnica do próprio Pseudo-Random Number Generator, com a identificação de padrões de repetição ou de matriz.
Para se reforçar a segurança do Pseudo-Random Number Generator é recomendável o monitoramento constante de execução do PRNG em vários estados de apresentação, ou seja, a variabilidade de execução do evento pseudo-randômico dentro da matriz de possibilidades definidas em software. Ademais, o ponto numérico de partida (seeding) do PRNG deve variar conforme o tempo, em variações recorrentes, para se evitar eventual mapeamento de matriz por parte de invasores técnicos ou de programas de monitoramento.
Em outras palavras, é interessante pensar em um atleta profissional de atletismo que correrá 100 metros rasos, a variação constante do seeding equivaleria a se alterar o ponto inicial e final do atleta na pista de atletismo. Assim na primeira corrida, o atleta iniciaria no ponto zero, na segunda corrida aos 137 metros, na terceira corrida aos 221 metros e assim sucessivamente. Com isso, o termo inicial do evento pseudo-randômico contribui para a execução mais adequada da dinâmica de jogo dotada de verdadeira aleatoriedade, o que permite a melhor consecução dos jogos a partir dos parâmetros de segurança, honestidade e confiabilidade ao jogador e ao setor como um todo.
Pode-se dizer que o segundo requisito, relativo à essência de aleatoriedade nos jogos de fortuna online, ultrapassa a simples utilização de um Pseudo-Random Number Generator e abrange também a proibição da utilização de ferramentas e de funções que podem auxiliar a inibição ou manipulação da operação do PRNG.
Essas recomendações são consubstanciadas na obrigação de que a dinâmica e resultado do jogo estejam baseados exclusivamente no resultado do PRNG e não possam estar sujeitos a uma alternativa secundária ou subsidiária de resultado após o PRNG apresentar o conjunto numérico vitorioso do jogo. Assim, o próprio operador deve estar sujeito aos resultados apresentados pelo PRNG, sem a realização de qualquer ajuste ou interferência posterior à apresentação do resultado.
3. Analisando o jogo
Apresentados os requisitos, a análise de uma eventual conformidade de uma modalidade de jogo em relação ao que prevê a regulamentação do setor de jogos e apostas no Brasil se inicia com as seguintes perguntas, que devem ter o ‘sim’ como resposta:
* O jogo é operado exclusivamente em meio virtual?
* Há uma quota fixa clara (fator de multiplicação) definida e informada ao usuário no momento de realização da aposta?
* O resultado desse jogo decorre de um evento futuro e aleatório, determinado por um RNG?
Sendo o jogo efetivamente operado apenas em meio virtual, com uma quota fixa clara definida e informada ao apostador e sujeito a um resultado determinado por um RNG, a modalidade apresenta os requisitos fundamentais de classificação como um jogo online, a partir das Leis nº 14.790, de 2023, e 13.756, de 2018.
É importante lembrar que, uma vez observados esses critérios, a análise definitiva do jogo fica a cargo do Ministério da Fazenda e a modalidade estará sujeita ao cumprimento de outros requisitos definidos para um processo de certificação por laboratório especializado, e os detalhes dessa autorização podem ser debatidos com um advogado de confiança do operador.
Filipe Senna
Sócio do Jantalia Advogados, mestre em Direito de Jogos com enfoque em jogos de fortuna online.