A exploração de loterias no Brasil, atividade que, historicamente, sempre esteve intrinsecamente ligada ao conceito de serviço público, regulada e supervisionada pelo Estado em benefício da sociedade, especialmente no Rio de Janeiro, revela uma trajetória repleta de marcos normativos e decisões judiciais que impactaram diretamente o cenário atual.
A Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), fundada como sucessora do Departamento Autônomo de Loteria do Estado do Rio de Janeiro e da Loteria do antigo Estado da Guanabara (Loteg), vem desempenhando um papel crucial neste contexto, refletindo a complexidade do sistema regulatório ao longo dos anos.
1. Contexto histórico e regulatório da Loterj
O Decreto-Lei n.º 138, de 23 de junho de 1975 estabeleceu que, o serviço de Loteria no Estado do Rio de Janeiro será explorado pela Loteria do Estado do Rio de Janeiro – Loterj, na qualidade de sucessora do Departamento Autônomo de Loteria do Estado do Rio de Janeiro – Loterj e da Loteria do Estado da Guanabara – Loteg, operada na conformidade do disposto no § 1º, do art. 12, da Lei Complementar nº. 20 de 1974.
A referida exploração foi inicialmente ratificada pelo Decreto Federal nº. 5.409 de 29 de março de 1940 e, posteriormente, com a aprovação do Regulamento do Serviço de Loteria do Estado da Guanabara (SELE), pelo Decreto Estadual nº. 827, de 18 de janeiro de 1962, passou a vigorar, com a publicação do Decreto de Ratificação nº. 1.029, de 18 de maio de 1962, nos termos do art. 3º, do Decreto-Lei Federal nº. 6.259 de 10 de fevereiro de 1944, que determina que:
“A concessão ou exploração lotérica, como derrogação das normas de Direito Penal, que proíbem os jogos de azar, emanará sempre da União, por autorização direta quanto a loteria federal ou mediante decreto de ratificação quanto às loterias estaduais”.
No entanto, em meio à ditadura militar, o Decreto-Lei Federal nº 204 de 1967 proibiu a criação de novas loterias estaduais, centralizando o controle na União. Isso foi uma tentativa de organizar e uniformizar a exploração das loterias no país.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a competência da União para legislar sobre "sistemas de consórcios e sorteios", incluindo “bingos e loterias” foi reafirmada e ampliada (art. 22, inciso XX). Contudo, a Constituição também abriu espaço para que estados continuassem explorando modalidades lotéricas preexistentes, desde que dentro das normas federais, diante da ausência de monopólio na exploração.
2. A exploração de loterias como serviço público
Desde o início, a exploração lotérica foi considerada uma atividade de interesse público, operada sob a supervisão do Estado para garantir que os recursos gerados fossem revertidos em benefício da sociedade. Essa visão foi consolidada pelo Decreto-Lei nº 204 de 1967, que centralizou o controle da exploração lotérica na União, ao mesmo tempo em que permitiu a continuidade das loterias estaduais já existentes.
Esse caráter de serviço público exige que a exploração lotérica seja conduzida sob os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, conforme previsto no artigo 37 da Constituição Federal. A Loterj, nesse contexto, tem a responsabilidade de operar suas modalidades lotéricas com transparência e eficácia, direcionando os recursos para projetos sociais e culturais no Estado do Rio de Janeiro.
3. A Decisão do STF nas ADPFs 492 e 493: Muito além da confirmação
A edição da Súmula Vinculante nº 2 pelo STF em 2007, declarando a inconstitucionalidade de leis estaduais que dispusessem sobre sistemas de sorteios e consórcios, incluindo bingos e loterias, reforçou o papel da União na regulação desses jogos.
Entretanto, o julgamento das ADPFs 492 e 493, em 2020 trouxe uma nova perspectiva ao confirmar que os entes federados podem explorar loterias, desde que não criem novas modalidades e respeitem os princípios constitucionais.
O julgamento das ADPFs 492 e 493 pelo STF em 2020 representou um marco na história das loterias estaduais. A decisão não apenas confirmou o direito dos estados e do Distrito Federal, de explorarem loterias criadas antes da promulgação da Constituição de 1988, mas também abriu novas possibilidades para os demais entes federados.
O STF entendeu que, embora a União tenha a competência privativa para legislar sobre consórcios e sorteios (art. 22, XX, da CF/88), incluindo bingos e loterias, os entes federados possuem autonomia para explorar as modalidades lotéricas criadas por lei federal, desde que respeitem os limites do pacto federativo.
Isso significa que os entes federados, incluindo o Rio de Janeiro pela Loterj, podem concorrer em igualdade de condições com a União, disputando a preferência dos apostadores.
Mais do que isso, a decisão ampliou o campo de atuação dos entes federados, permitindo que explorem não apenas as modalidades tradicionais, mas também novas modalidades de jogos de fortuna, desde que compatíveis com as normas constitucionais e infraconstitucionais.
Esse entendimento representa uma verdadeira abertura de portas para os estados e municípios, permitindo que inovem e diversifiquem suas ofertas no mercado lotérico, seguindo a norma geral da União.
Essa evolução jurisprudencial permitiu que loterias estaduais, como a Loterj, continuassem a operar suas modalidades dentro de um ambiente regulatório mais claro e definido, garantindo a manutenção de suas atividades e contribuindo para o financiamento de projetos sociais, sem embargos.
4. Proibição da exploração de bilhetes físicos fora do território estadual
A comercialização de bilhetes físicos de loterias estaduais é adstrita aos limites do Estado respectivo, conforme estabelecido pelo vetusto Decreto-lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944. Essa limitação se justifica pelo princípio da legalidade, que exige que a administração pública atue estritamente dentro dos limites da lei.
O descumprimento dessas regras, com a venda de bilhetes físicos fora do território estadual, representaria uma violação da competência privativa da União para legislar sobre loterias em âmbito nacional e eventual conflito entre os entes federados.
Do ponto de vista do princípio da eficiência, essa restrição pode parecer limitante. A impossibilidade de expandir a comercialização de bilhetes físicos além das fronteiras estaduais pode reduzir o potencial de arrecadação e limitar o impacto social das loterias estaduais.
Contudo, essa limitação é um reflexo da necessidade de controle e organização das atividades lotéricas no país e especialmente a ausência de competência para atos de fiscalização e controle da exploração além do respectivo território onde o serviço público é prestado.
Entretanto, o avanço tecnológico e a regulamentação das apostas de cota fixa trouxeram uma nova dinâmica ao setor, permitindo que as loterias estaduais e municipais expandam sua atuação para além das fronteiras físicas, através do ambiente digital.
5. Expansão para o ambiente digital: Jogos online
A legislação recente, particularmente a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, aprimorada pela Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, que regulamentam as apostas de cota fixa e jogos online, abriram novas possibilidades para a exploração de jogos de fortuna no Brasil, especialmente no ambiente online.
Diferentemente dos bilhetes físicos, a exploração de jogos online transcende as fronteiras físicas e territoriais, permitindo que os entes federados, diretamente ou mediante concessão, permissão ou credenciamento, por meio de licitação. A exemplo do Estado do Rio de Janeiro, a cargo da Loterj, enquanto autarquia estadual, amplie seu alcance e explore novos mercados, formados pelos consumidores que venham virtualmente acessar as plataformas dos provedores localizadas no estado.
A exploração de jogos online, ao contrário dos bilhetes físicos, não enfrenta as mesmas restrições territoriais, permitindo uma operação mais eficiente e lucrativa. Isso está em plena consonância com os princípios constitucionais da autonomia administrativa e da eficiência, entre outros, que buscam otimizar a arrecadação de recursos e ampliar o impacto social das loterias.
Ao explorar jogos online, os entes federados podem se beneficiar de um mercado em constante crescimento, sem as restrições territoriais impostas aos bilhetes físicos.
Do ponto de vista jurídico, essa expansão deve ocorrer em estrita observância ao princípio da legalidade, garantindo que as operações respeitem as regulamentações federais e os direitos dos consumidores.
A Loterj, ao adotar plataformas digitais para a venda de produtos lotéricos, pode alcançar um público mais amplo e diversificado, aumentando sua arrecadação e eficiência sem infringir as restrições legais e ao contrário, não estaria forçada a gastar mais com mecanismos de restrição de acesso e controle para arrecadar menos.
6. Conclusão
A evolução do entendimento do STF sobre a exploração de modalidades lotéricas pelos entes federados, daí incluindo-se os municípios, em conjunto com a legislação vigente, oferece um cenário desafiador e promissor para o mercado lotérico.
A Loterj, com sua história e base jurídica consolidadas, deve continuar operando dentro dos limites legais, respeitando as restrições territoriais para a comercialização de bilhetes físicos, mas explorando ao máximo as oportunidades oferecidas pelo ambiente digital.
Esse equilíbrio entre legalidade e eficiência é fundamental para que a Loterj continue desempenhando seu papel na sociedade, contribuindo para o financiamento de projetos sociais e garantindo a sustentabilidade de suas operações em um mercado cada vez mais competitivo e dinâmico.
Paulo Horn
Sócio fundador do Paiva & Horn Advogados Associados. Presidente da Comissão de Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ, Membro da Associação Brasileira de Direito Político e Eleitoral - ABRADEP e da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ. Exerceu os cargos de diretor administrativo e financeiro, assessor-chefe do Jurídico e vice-presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro - Loterj. Mestre em Direito da Cidade pela UERJ.