A concorrência desleal no mercado de bets no Brasil assombra o empreendedorismo, fragiliza a economia nacional e conta com o apoio não apenas de operadores informais, mas da própria administração pública, que sistematicamente fomenta a insegurança jurídica e, assim, incentiva a clandestinidade.
Exemplo disso está na ACO - Ação Cível Originária 3.6961 no STF, de iniciativa da União contra a Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), na qual o ministro André Mendonça, relator do caso, deferiu inadvertidamente em pleno recesso forense (2/1/25) uma liminar para que a Loterj encerre em 5 dias a "exploração da atividade de loterias e jogos eletrônicos fora dos limites territoriais do Estado do Rio de Janeiro", usando como fundamento uma regra ulterior alardeada pela União e que, em verdade, foi distorcida e inexiste na lei.
O caso em si não é o escopo desta análise, mas bem traduz a pedra no sapato.
Em suma, diz a União que a Loterj, sob pena de ofensa ao pacto federativo, deve empregar "tecnologia de georreferenciamento que bloqueia tentativas de apostas de pessoas que se encontrem em outras unidades federadas", pois o modelo adotado pela Loterj, de preenchimento de declaração e anuência pelo apostador, de que sua aposta será considerada realizada no Rio de Janeiro para todos os fins legais, não garante o cumprimento do critério territorial - segundo o qual a exploração do serviço lotérico pelos estados fica limitada aos seus respectivos territórios, cabendo somente à União a exploração em âmbito nacional.
Ocorre que, como no Brasil a segurança jurídica é mero adorno estético para inglês ver, o ministro Mendonça, levado a erro pela União, ignorou que tal regra de limitação territorial foi criada apenas pela lei 14.790, de 29 de dezembro de 2023, publicada em 30/12/232, ou seja, quase 6 meses após a adoção pela Loterj do modelo simples de declaração e anuência.
Com efeito, a Loterj adotou tal modelo conforme seu Edital de Credenciamento 001/23, publicado em 25/4/2023 e com retificação publicada em 26/7/2023.
Quer dizer, inexistia naquele tempo qualquer limitação territorial para a exploração do serviço, previsão sobre georreferenciamento e critérios de localização ou de domicílio do apostador. E mesmo com o advento da limitação territorial através da lei 14.790/23, esta lei, ainda assim, não determinou de nenhum modo a adoção de mecanismos de georreferenciamento, deixando a cargo dos Estados a regulamentação da matéria. Não obstante, o ministro Mendonça determinou contra a Loterj inclusive "o retorno da obrigatoriedade do uso de mecanismos eletrônicos de geolocalização".
Deveras o Brasil não é para amadores.
Para quem tem memória, a lei 13.756/2018 legalizou as apostas online de quota fixa no Brasil e deu ao Ministério da Fazenda o prazo de até dois anos, prorrogável por até mais dois, para regulamentar a exploração da atividade. Todavia, a União quedou inerte, demorando mais de cinco anos para editar a lei 14.790/23, que introduziu o novel jabuti da territorialidade, ocasião em que a Loterj já operava nos moldes do seu Edital de Credenciamento 001/23.
Diante da demora do Poder Público em cumprir seu dever e, mais importante, considerando a natural consolidação no tempo das relações jurídicas pretéritas, como a da Loterj, a mesma lei 14.790/23 instituiu no §8º do art. 35-A da lei 13.756/18 uma cláusula intertemporal de proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
Nos termos desta cláusula, "são preservadas e confirmadas em seus próprios termos todas as concessões, permissões, autorizações ou explorações diretas promovidas pelos Estados e pelo Distrito Federal a partir de procedimentos autorizativos iniciados antes da publicação da medida provisória 1.182, de 24 de julho de 2023, assim entendidos aqueles cujo primeiro edital ou chamamento público correspondente tenha sido publicado em data anterior à edição da referida medida provisória6, independentemente da data da efetiva conclusão ou expedição da concessão, permissão ou autorização, respeitados o direito adquirido e os atos jurídicos perfeitos".
Vale notar, a propósito, que além de não ter estabelecido qualquer limitação territorial e menos ainda a obrigação de adoção de mecanismos de georreferenciamento, a medida provisória 1.182/23 caducou, pois não foi convertida em lei.
Ou seja, por óbvia lógica e simetria do sistema, os atos pretéritos da Loterj, regidos pelo seu Edital de Credenciamento 001/23, porquanto anteriores ao ato do Poder Executivo, que não previa nenhuma restrição territorial, deveriam estar resguardados, certo? Bem... não é o que pensa a administração brasileira, como visto, que mais uma vez age na contramão dos valores sociais da livre iniciativa que fundamentaram a legalização das apostas no Brasil.
Na prática, enquanto os operadores credenciados pela Loterj já recolheram mais de R$ 100 milhões em tributos federais apenas em favor da União, a própria União, utilizando-se de criacionismos e da própria torpeza, com o endosso do Poder Judiciário, propicia um ambiente verdadeiramente hostil para as bets legalizadas, máxime porque enrijece as regras para as de dentro ao passo em que incontáveis players sediados em paraísos fiscais e na China, imunes à lei brasileira, seguem atuando sem submeterem-se às mesmas condições concorrenciais, operando livremente no país sem recolher os impostos federais, estaduais e municipais, representando evasão fiscal inclusive.
Nesse cenário desigual, de desconfiança e insegurança, certamente os maiores atingidos não são a Loterj e seus operadores credenciados, mas a nação inteira, que sofre amarrada ao atraso, vítima do excesso de regulamentação, dessa infindável paixão partidário-governamental por centralização artificial de poder e reservas de mercado sempre em detrimento do destinatário final dos serviços públicos, o povo, o indivíduo, o cidadão.
Destravar o Brasil de amarras burocráticas irracionais e truncadas, nas quais se inserem tantos entraves administrativos, judiciais, políticos, econômicos e legais para a livre iniciativa, deveria ser encarado seriamente como um objetivo estratégico de interesse nacional, pois, conforme Milton Friedman e Ludwig von Mises, renomados economistas e influentes defensores do liberalismo econômico dos séculos XX e XXI, "a liberdade econômica, por si só, é parte extremamente importante da liberdade total", e "a nação mais próspera será aquela que não tiver colocado obstáculos ao espírito da livre empresa e da iniciativa privada".
Hazenclever Lopes Cançado
Presidente da Loterj
Fonte: Migalhas