LUN 15 DE DICIEMBRE DE 2025 - 04:36hs.
Alice Voronoff e Rafaela Canetti, advogadas do escritório GBA

Competências federativas, ambiente virtual e bets

O federalismo brasileiro sempre teve a localização como base para divisão de competências, mas o ambiente virtual desafia essa lógica. Na visão de Alice Voronoff e Rafaela Canetti, advogadas do escritório GBA em artigo para o Valor, a disputa entre União e Estados sobre apostas online ilustra esse conflito. O STF validou a exploração estadual de loterias, mas exige respeito às normas federais. A territorialidade das bets segue incerta, exigindo regulamentação clara, defendem.

No federalismo brasileiro, o elemento territorial sempre costumou ser o norte da complexa divisão de atribuições entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Mas o ambiente virtual desafia essa lógica. Nele, as relações transcendem fronteiras, tornando difícil situar a esfera de prevalência de interesses. E isso tende a impulsionar disputas jurídicas, econômicas e políticas, com entes concorrendo entre si para resguardar (ou ampliar) o alcance das próprias competências.

Veja-se o caso da regulamentação das loterias, com destaque para as apostas de quota fixa (bets), cuja proliferação online tem gerado conflitos entre União e Estados.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a competência da União para legislar sobre loterias. Contudo, reconheceu que os Estados podem explorar loterias enquanto serviços públicos e regulamentá-las, dentro de seus limites territoriais, desde que respeitem as normas federais.

Trata-se de interpretação que é facilmente aplicada ao universo de papel e a sorteios televisionados. Mas como delimitar o alcance territorial desses serviços quando a aposta é online?

São questões que hoje ocupam o centro de um debate com diferentes frentes. Na Ação Cível Originária nº 3696, a União questiona a legalidade do Edital de Credenciamento nº 01/2023 da Loterj, alegando que a ausência de geolocalização permitiu operações fora dos limites do Estado, em violação ao art. 35-A da Lei Federal nº 13.756/2018, que restringe a comercialização e a publicidade de loteria aos residentes ou fisicamente localizados nos Estados.

Para a Loterj, bastaria a declaração do apostador de que a aposta ocorreria no Estado do Rio de Janeiro; para a União, a geolocalização é essencial. É essa a posição até aqui adotada pelo relator, Ministro André Mendonça, que apontou que a dispensa da geolocalização implica em ampliação artificial do território estadual.

As discussões sobre o alcance do art. 35-A também aparecem na ADI nº 7640, que questiona a proibição de publicidade pelas lotéricas estaduais fora de seus limites territoriais. Em outubro de 2024, o relator, ministro Luiz Fux, deferiu liminar suspendendo, dentre outros pontos, a expressão “publicidade” do §4º do mesmo artigo 35-A. Na prática, o que o ministro disse é que a propaganda de loterias estaduais pode ter alcance nacional.

No entanto, o ministro fez uma ressalva: sua decisão sobre a publicidade interestadual se aplica às loterias em geral, mas não às bets, cujo marco legal é objeto da ADI 7721 e lá deve ser discutido. ADI essa em que o STF deferiu medida cautelar para evitar publicidade voltada a menores e impedir apostas com recursos de programas sociais, como o Bolsa Família, mas não tratou especificamente da questão da territorialidade.

Os exatos termos do que a ressalva do ministro Luiz Fux significa não ficam claros. De um ângulo, pode-se interpretar que, para as bets estaduais, continua aplicável o limite territorial do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018, no que tange à sua publicidade. Mas há uma outra leitura possível: a de que tal modalidade de jogo estaria sujeita, toda ela, a uma a uma disciplina diversa, extraída da Lei nº 14.790/2023, de modo que caberia ao aplicador do direito buscar nesse regime a resposta sobre os limites aplicáveis à publicidade – uma interpretação que, a prevalecer, parece conflitar com a premissa adotada pelo ministro Mendonça na ACO nº 3696 quanto à efetiva incidência do art. 35-A da 13.756/2018 às bets.

O momento ainda é de mais dúvidas do que respostas. Não está claro como conciliar, de um lado, a competência material dos Estados para explorar a atividade como serviço público (e, para esse fim, regulamentá-la) e, de outro, a competência privativa da União para legislar sobre loterias. O que há de certo é que as divergências mencionadas são apenas a ponta do iceberg. O tema das bets é relevante e sua regulamentação é não só legítima, como necessária. É fundamental que os atores e instituições atuem com clareza, coordenação e sensibilidade diante dos desafios da realidade digital.

Alice Voronoff
Mestre e doutora em Direito Público pela UERJ, pós-doutora em Direito pela Universidade de Coimbra e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados (GBA

Rafaela Canetti
Mestre e doutoranda em Direito Público pela UERJ e advogada sênior do GBA