SÁB 23 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 21:30hs.
Gaming & eSports / TozziniFreire Advogados

A lista de “banidos” nos jogos online: uma questão de proteção de dados pessoais ou de fair play?

Patrícia Helena Marta Martins, sócia na área de Gaming & eSports da TozziniFreire Advogados, e Amanda Celli Cascaes, advogada da mesma área do escritório, analisam neste artigo o tema da lista de banidos em jogos eletrônicos, sua relação com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e consequências para os próprios jogadores. “O fato de a lista de banimento ser tão controversa é justamente o indicativo de que é uma medida efetiva para coibir abusos”, afirmas as especialistas.

Há vários anos, acompanhando o desenvolvimento da tecnologia e da expansão digital, a indústria dos jogos vem crescendo e atingindo públicos mais diversos. Longe de ser uma realidade restrita ao público infanto-juvenil, o mercado dos games movimenta mais dinheiro do que o cinema e a música juntos – sendo o setor responsável por mais de metade do valor da indústria de entretenimento.

Diante dessa expansão e do aumento exponencial do número de jogadores, é esperado que novas questões sejam postas para debate, em especial no que tange à convivência no mundo digital.

No contexto dos jogos online, em que os jogadores interagem e competem entre si, o “fair play”, ou jogo limpo, é essencial para a manutenção de um ambiente saudável e harmônico. Por isso, cada jogo tem as suas regras – ou os “termos de uso”, assim como ocorre em outras aplicações de internet.

Um jogador que descumpre as regras do jogo pode sofrer restrições e, inclusive, ser suspenso ou banido do jogo. Atualmente, a divulgação de listas de banimento (contendo os nicknames dos jogadores penalizados) é prática não usual na indústria. Contudo, em um contexto de competição ou torneio profissional, pode haver necessidade de divulgação do ocorrido – por questões de transparência.

Em 2019, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) proferiu uma decisão concedendo indenização por dano moral a um jogador que figurou como banido. Segundo a decisão, o nome de usuário do jogador (nickname) permaneceu à vista dos demais jogadores como “banido”, causando-lhe constrangimento. A decisão é inovadora, pois reconhece os impactos que a imagem social pode sofrer – ainda que apenas perante outros “nicknames” no contexto virtual, sem registros de exposição no mundo real.

No caso julgado pelo TJRJ, considerou-se que a empresa responsável pelo jogo não havia provado o efetivo descumprimento das regras pelo jogador. Mas, se ele tivesse realmente violado as regras, ainda assim caberia dano moral?

Mais recentemente, em 2021, o tema foi objeto de sentença de improcedência (oriunda na Comarca do Rio de Janeiro), em demanda proposta por jogadores banidos – que continha pedido, inclusive, de dano existencial. Segundo a sentença, “caso comprovada ilegalidade de conduta dos jogadores, ou infração aos termos de uso ao qual aderiram, seria possível constatar se a plataforma garantiu as informações necessárias de forma clara e em obediência aos princípios que regem o CDC, ou se comunicou sobre as infrações antes do banimento”. Ou seja, em cumprimento ao dever de informar e com comunicação prévia ao usuário, o banimento estaria autorizado.

Ainda, a sentença rechaçou a ideia de que o banimento em jogo eletrônico poderia causar um dano existencial: “Imaginar que um avatar e o mundo no qual ele vive virtualmente, se constitui em direito existencial a ser protegido pela potente e essencial rede de direitos humanos fundamentais, é pretender incluir na fantasia, o acesso à justiça, proteção civilizatória e essencial para a vida em grupo na vida concreta e real”. O processo ainda pende em fase recursal.

Por um lado, o nickname pode ser considerado um dado pessoal nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), se por meio dele puder ser identificado o usuário – tal qual o CPF e o e-mail. Assim, o nickname – ainda que no contexto virtual, perante os demais jogadores – seria objeto de proteção pela lei. De todo modo, como o nome e CPF de um consumidor pode ser negativado em caso de inadimplemento (com o objetivo de proteger o mercado), o nickname também poderia ser “negativado”, em prol do interesse da coletividade de jogadores. Parece que a discussão é muito mais quanto à credibilidade da lista e os critérios de inclusão, do que a legalidade da lista em si.

A LGPD foi muito aguardada e não se questiona a sua importância no contexto atual – em que os dados são verdadeiros ativos na economia. Contudo, a LGPD não pode ser utilizada como pretexto para acobertar condutas violadoras, em detrimento dos demais usuários que seguem as regras. O ambiente virtual é um espaço coletivo de convivência, que conta com cada vez mais usuários – a observância das regras é essencial para a proteção da coletividade.

Tal qual ocorreu com o Código de Defesa do Consumidor em 1990, a LGPD é novidade no contexto normativo nacional e ainda pende para uma interpretação mais favorável ao titular de dados. Com o passar dos anos e o atingimento de um maior equilíbrio na relação entre titular de dados e agentes de tratamento, a tendência é de uma interpretação mais ponderada da lei.

Por outro lado, cada vez mais o ambiente virtual exige fair play. Os demais jogadores e as próprias empresas não querem o ambiente corrompido por aqueles que não seguem as regras do jogo. Nesse contexto, a lista de banidos funcionaria como um desestímulo à trapaça e a outros comportamentos indesejados. Segundo conceitos básicos da Análise Econômica do Direito, as pessoas reagem a incentivos e, no caso dos jogos online, a impunidade pode ser combustível para condutas abusivas.

A lista de banidos em jogos eletrônicos obviamente causa embaraço àquele que nela figura, mas essa seria a consequência previamente aceita por todos os jogadores (consentida quando do registro e criação da conta) e aplicada de forma justa a quem viole as regras. Quando corretamente aplicada, não parece que essa “penalidade” possa gerar indenização, sob pena de se premiar o jogo sujo e comprometer a efetividade da punição.

Inclusive, o fato de a lista de banimento ser tão controversa é justamente o indicativo de que é uma medida efetiva para coibir abusos. Talvez a saída seja criar as “regras do jogo” para a lista de banimento, em cumprimento ao dever de informação e de transparência.

Patrícia Helena Marta Martins
Sócia na área de Gaming & eSports de TozziniFreire Advogados

Amanda Celli Cascaes,
Advogada na área de Gaming & eSports de TozziniFreire Advogados