A SBC Summit 2024, em Lisboa, foi um êxito. Foi isso mesmo que se ouviu da boca de todos quantos por ali passaram e participaram. Impressionou pela sua extensão, pela sua dinâmica e pela qualidade dos oradores. Foram dias intensos, de reencontro com amigos da indústria, de novos contatos, de visita a expositores e de aprender muito mais, quer nas conversas entre pares, incluindo nos side events para onde fui convidada, quer em qualquer uma das conferências assistidas.
O Brasil esteve no centro de todas as atenções dada a recente regulamentação do mercado e o interesse massivo de todos os agentes do mercado por se abrirem novas perspectivas de negócio num país com uma dimensão considerável. Isso mesmo se verificou, nomeadamente, pelo lançamento de novas empresas como a Jobs Bet especializadas em recrutamento para este mercado.
É um mercado muito apelativo para as operadoras, apesar do reclamado preço elevado das licenças, mas a situação de inúmeras empresas que não apresentaram o pedido de licenciamento nos novos prazos estipulados pela Portaria 1475, suscita muitas dúvidas e receios; bem como todas as notícias que vão surgindo quanto a novas restrições e exigências, perante uma opinião pública e comunicação social muito avessas à indústria do jogo. Verifica-se que existem mais perguntas que respostas. A incerteza de todos quantos se encontram no limbo criado pela referida portaria não aporta qualquer vantagem.
A clareza das regras é um importante fator do investimento e a limitação do número de empresas que poderá começar a operar, com a exclusão das que não observaram os referidos prazos, manterá muitas no mercado cinza, com prejuízo para os cofres do Estado e para a proteção dos jogadores. É consabido que mercados regulados há mais tempo não conseguiram eliminar o mercado cinza. É ingénuo pensar que se consegue banir este problema por completo.
Tive ainda oportunidade de participar nos eventos do Women Empowerment Iniciativ, e noutras iniciativas dirigidas às mulheres, vendo atribuída uma menção honrosa à AMIG (Associação de Mulheres da Indústria do Gaming), na pessoa da Teresa Caeiro. Uma honra participar nesta associação, e na Internacional Gaming Women, e ter conhecido muitas das mulheres de fibra que a compõem.
Confesso que a zona das conferências que mais me prendeu foi a dedicada à proteção do jogador, onde se incluem também as relacionadas com a identificação do jogador e com a aferição da sua capacidade financeira. Mas também houve tempo para muito ouvir falar sobre o Brasil, principalmente agora o brasileiro, com suan nova regulamentação Do que ouvi, resulta em suma que:
- Continua-se a discutir em todo o mundo até que ponto se devem impor limites ao jogador. Assiste-se, em várias jurisdições, à imposição de limites de aposta ou de depósito variando estes fatores, em algumas delas, em razão da idade do jogador.
Alguns acusam estas tendências de paternalismo excessivo, outros reclamam a sua insuficiência. Foi unânime o entendimento de que deve haver uma responsabilidade compartilhada entre as operadoras e o jogador, no que diz respeito ao jogo problemático: de um lado, as operadoras têm conhecimento de todos os dados do jogador, de quanto investe, das variações do seu comportamento e, com base nisso, podem adotar medidas para evitar o jogo problemático.
Não são jogadores anonimizados. Do outro lado, os sistemas públicos de saúde têm de assumir a responsabilidade de tratar este problema. Contudo, sem o jogador, os operadores e os sistemas de saúde nada podem fazer. O jogador tem de procurar ajuda e cooperar no tratamento. Para isso tem de ser informado previamente do que são os indícios de problemas de jogo, bem como dos locais onde se pode dirigir no caso de necessitar de ajuda;
- Se, se reconhece que é importante conferir formação, na área de jogo responsável, aos trabalhadores da indústria, é igualmente recomendado educar-se os jogadores nesse sentido, o que pode incluir formação quanto às regras e dinâmicas de cada jogo disponibilizado. Se o jogador souber como jogar e como se proteger, torna-se um jogador sustentável, de longo termo que, com menor probabilidade, se tornará um jogador problemático;
- É importante investir no sistema de deteção de jogadores com problemas de adição de modo a que se possa investir tempo e recursos numa intervenção personalizada, com mais qualidade, junto destes jogadores. Ao invés de se despender todo o tempo na interpretação dos dados, os recursos humanos estarão mais disponíveis para uma intervenção humana junto de quem apresenta indícios de jogo problemático. E se, em alguns casos, a abordagem resulta através de um contacto telefónico com o jogador, as novas gerações, que praticamente não usam as chamadas telefónicas, podem justificar um contacto por WhatsApp;
- Constatou-se que a AI nunca poderá substituir, por completo, a intervenção humana no caso de jogo problemático. A AI facilita e torna mais rápido o conhecimento do comportamento do jogador, mas será sempre necessário o contacto pessoal;
- Defendeu-se que a indústria deve explicar aos reguladores o que é necessário fazer, se for necessário ir mais além na proteção do jogador, devendo ser possibilitada a autorregulação. Se o consumidor não for protegido, a indústria sofrerá os ataques de uma opinião pública negativa e, consequentemente, poderá ser alvo de restrições legais mais apertadas, nomeadamente ao nível da publicidade como já sucede em algumas jurisdições;
- As restrições impostas ao jogador e ao jogo praticado, já precedidas das rigorosas verificações à sua identidade visam protege-lo. Reconhece-se, no entanto, que processos de reconhecimento e de verificação demorados e burocráticos e a fixação de limites muito restritos poderão levar o jogador a migrar para o mercado cinza onde não existem estes procedimentos;
- Foi defendida a necessidade de uma regulamentação única na Europa no que diz respeito à autoexclusão e mesmo a instituição de um passaporte/cartão único de jogador de modo a que os limites por ele instituídos numa operadora o possam seguir para as outras operadoras onde se encontre registrado. Esta fixação de limites, aferível no conjunto das várias operadoras, é possível em algumas jurisdições. Se os parques infantis devem ser vedados para impedir que as crianças saiam para a estrada, o jogador também deve ser protegido, através da fixação de limites;
- A aferição da capacidade financeira do jogador, nomeadamente quando apresenta um pedido para aumento do montante de aposta ou em outras situações idênticas, nas jurisdições em que tal é exigível, levanta problemas ao nível da proteção de dados: até que ponto e até onde se pode escrutinar os gastos diários/mensais de um jogador no dia a dia através de um sistema de open source banking;
- A apresentação da Legitimuz, uma plataforma especificamente pensada para verificação de Identidade e reconhecimento facial para iGaming, foi deveras interessante. De acordo com o exposto, esta plataforma, não só utiliza Inteligência Artificial especificamente treinada para analisar documentos e comparar dados com as bases públicas, de modo a garantir a sua veracidade, mas também o reconhecimento facial 3D.
Garante-se um processo completo em menos de 30 segundos: análise de documentos, reconhecimento facial e análise instantânea. A plataforma também permite que o jogador que se regista em várias operadoras possa utilizar o registo anterior, exigindo-se apenas o reconhecimento facial e facultando-se a possibilidade do jogador mudar a foto se for de seu interesse. O sistema também permite detetar e bloquear múltiplas contas no mesmo IP e dispositivo;
- Em face das funções que exerço, foi muito interessante assistir à discussão da pertinência da criação do Gambling Ombudsman, no UK, que se apresenta como um órgão independente, gratuito e limitado a resolver questões de responsabilidade social e não contratual. Intervirá em questões onde a Comissão de Jogos não pode intervir e em que o recurso à via judicial seria demasiado oneroso e moroso.
Tratando-se de um órgão cujas funções são, por definição e tradição, direcionadas para o poder público e para casos de má administração, será curioso ver como poder intervir em casos em que jogador se insurge contra o facto de não ter havido uma pronta intervenção perante os indícios jogo problemático.
Não sendo as suas recomendações vinculativas, será o poder da argumentação e a sua credibilidade que imporá perante um operador mais renitente. De todo o modo, poderá ser uma mais valia na descoberta de erros em procedimentos, na sugestão de novos ou alteração dos existentes, para o reforço da proteção do jogador;
- Concluiu-se que a regulamentação do jogo implica necessariamente a regulamentação da publicidade, devendo-se adotar frases suficientemente criativas que se tornem universais de modo a captar a atenção de quem possa desenvolver um problema de jogo, à semelhança da célebre frase usada na segurança automóvel: “se beber, não conduza”.
Ainda motivados com o paralelismo da segurança automóvel sugere-se algo do género: se quando entra no carro coloca cinto de segurança, se tiver um problema de jogo adote limites. Defendeu-se que a mesma estratégia de marketing que é utilizada para atrair os jogadores, deve ser utilizada para os proteger, para que possam ser clientes mais sustentáveis.
Quanto mais informado e mais se sentir sob controle menos provavelmente recorrerá à autoexclusão e ao encerramento da conta. A temática dos influencers e a sua intervenção na promoção do jogo justificou uma acesa troca de ideias. Aos operadores caberá dar-lhes formação e conteúdo, para se garantir um marketing ético.
França e Espanha foram os primeiros países europeus a regulamentar a atividade dos influencers e, certamente, outros se seguirão nomeadamente, com obrigação de observância das regras da publicidade ao jogo, em especial, as relativas à proteção das crianças. Por outro lado, reconhece-se que certas apps que, como o TIKTOK, restringiram a promoção de jogo, não conseguem controlar ao segundo o conteúdo ali colocado;
- No que diz respeito à responsabilidade social da indústria, afirmou-se que os apoios concedidos a projetos sociais devem ser divulgados interna e externamente. Por outro lado, a responsabilidade social da indústria deve ser direcionada para o seu público alvo: adultos. Não faz sentido apoiar projetos para crianças e é até desaconselhável. Por exemplo, as grandes empresas podem, inclusivamente, apoiar pequenas empresas na implementação de medidas de jogo responsável;
-O investimento na investigação é crucial.
Carla Vicente
Legal Adviser da Provedoria de Justiça de Lisboa. Autora de "Noção de jogo - consequências juridico-praticas", ed.Gestlegal, 2023.