O jogo no Brasil passa por uma concepção social e moral ambígua. De um lado, boa parte do jogo explorado pelo particular é proibido e criminalizado, como os cassinos, o jogo do bicho, o bingo etc. De outro, o Estado é autorizado a explorar a “sorte” por meio das loterias federais.
O “acaso”, contudo, não parece ser o critério relevante para a proibição, haja vista a existência de outras atividades autorizadas que também lidam com as leis da fortuna (como as atividades financeiras atreladas às bolsas de valores).
A seguir constam alguns pontos de atenção que informam a discussão sobre a legalização do jogo:
- Há uma questão moral indissociável que permeia o debate sobre a legalização do jogo, seja no Projeto de Lei (“PL”) 442/1991 (Câmara dos Deputados), seja no PL 186/2014 (Senado Federal), seja na Arguição de Descumprimento de Preceityo Fundamental – ADPF – 563, seja no Recurso Especial 966177;
- Existem dois tipos de usuários: (i) o jogador convencional (seja ele esporádico ou não); e (ii) o jogador patológico, que manifesta o vício em jogar (ludopatia). Logo, há um componente importante de saúde pública que norteia o debate sobre a autorização do jogo no Brasil;
- Por estarem tais atividades na ilegalidade, não se questiona que exista um vínculo entre tais e a criminalidade. O debate no campo criminal também é relevante para nortear a autorização do jogo no Brasil.
Embora esses três aspectos sejam importantes, a proposta da presente coluna é responder à pergunta inicial partindo da premissa de que o jogo seria (ou será) legalizado e/ou autorizado.
Para tanto, estudou-se as experiências internacionais de Macau, Portugal e do Estado de Nevada (nos Estado Unidos da América), chegando a algumas constatações colocadas em linhas gerais abaixo:
- Em Macau, a tributação incide sobre a receita bruta das concessionárias autorizadas a explorar o jogo. Uma parte da arrecadação tem destinação ao desenvolvimento e promoção de setores culturais, acadêmicos, educativos, sociais, bem como ao desenvolvimento urbano e turístico, e à seguridade social. Além disso, condiciona a sua exploração ao pagamento de retribuições financeiras;
- Em Portugal: (i) o jogo territorial é tributado com duas bases de cálculo: a primeira parcela é o capital de giro inicial, com alíquotas que variam de acordo com a localidade; e a segunda parcela é a receita bruta, com alíquotas que variam de acordo com a localidade. O produto da arrecadação é destinado ao turismo; e (ii) o jogo online é tributado a partir da receita bruta com alíquotas fixas, sendo o produto da destinação ligado ao turismo, desporto, cultura, segurança, saúde, auxílio dos adictos e custos de conformidade. Ademais, há previsão de pagamento de contrapartidas financeiras (em pecúnia ou não) em relação aos cassinos; e
- Em Nevada, tributa-se faixas da receita bruta, com alíquotas progressivas, e permitindo-se deduções restritas da base de cálculo, incidindo apenas para entidades que possuem licenças não restritas. Existem tributos fixos que são divididos pela quantidade de jogos, além de tributos complementares sobre atividade ligadas aos jogos de azar (como o entretenimento).
Doutro lado, a literatura internacional mostra que a relação entre a tributação e o jogo possui alguns debates importantes que precisam ser evidenciados:
- A instituição de um tributo, por si só, poderia alterar comportamentos atrelados ao jogo irresponsável ou mesmo ao jogo patológico?
- Como mensurar e separar a demanda saudável daquela nociva, a fim de que o tributo possa capturar o que pode gerar efeitos negativos aos usuários e à sociedade?
- Pode-se compensar a autorização do jogo, tributando-o, sem, contudo, onerar e inviabilizar a atividade?
Esses três questionamentos, a partir do que se estudou, nos fazem crer que (i) induzir comportamentos, no caso do jogo, por meio de tributos não é facilmente verificável na prática; e (ii) seria possível compensar o custo social de autorizar tais atividades por meio das receitas públicas geradas.
Trazendo a questão da arrecadação do jogo para o Brasil e respondendo à pergunta inicial, uma possível autorização poderia gerar as seguintes consequências tributárias e financeiras:
- As atividades dos jogos de azar, se legalizadas, estariam sujeitas ao Imposto Sobre Serviços - ISS, seja porque há um item específico na lista da Lei Complementar n. 116/2003, seja porque o Supremo Tribunal Federal entende que as apostas estão dentro do figurino do conceito constitucional de serviço;
- Os jogos de azar também estariam dentro do âmbito de incidência da contribuição social, por conta de autorização constitucional, previsto no artigo 195, inciso III, da Constituição Federal (que traz a expressão “receita de concursos de prognósticos”);
- A depender da modalidade do jogo a ser explorada e da maneira pela qual ela for explorada, haveria a possibilidade de (i) criação de taxas; (ii) instituição de contrapartidas para remunerar contratos públicos; e (iii) reversão direta ao orçamento público de parte da arrecadação (como ocorre com as loterias); e
- Com a autorização, é possível prever despesas com gastos administrativos, fiscalizatórios e de pessoal, além de despesas decorrentes das próprias externalidades negativas da autorização para exploração do jogo (de ordem criminal, social e de saúde), que devem estar alinhadas com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000).
Sugere-se, além disso, a instituição de uma Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico - CIDE, com alíquota baixa. Para tanto, adota-se um critério de vinculação da receita às despesas públicas decorrentes da autorização das atividades (como as de saúde pública), ao desenvolvimento do turismo e ao próprio desenvolvimento regional atrelado às localidades onde os jogos forem explorados.
Assim, fora a tributação normal que qualquer atividade econômica está submetida no Brasil (com as incidências do IRPJ, CSLL, e do PIS/COFINS), seria possível realizar uma conformação tributária parecida com a de Macau e de Portugal, com receitas tributárias atreladas a despesas específicas de fomento e de saúde pública.
Essa coluna abordou possíveis questões financeiro-tributárias decorrentes de uma eventual legalização dos jogos de azar. Espera-se, portanto, ter colaborado com o debate sobre a exploração de tais atividades no Brasil.
Fica convite ao leitor a se juntar a este debate.
João Vitor Xavier
Advogado tributarista em São Paulo, no escritório Galvão Villani Navarro. Graduado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especializado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e mestre em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).