O século 21 consolidou a tendência de migração da atividade econômica e grande parte dos empregos para o setor terciário, tanto em razão da sua diversidade quanto pela crescente automação da indústria, mineração e agricultura.
Entre os serviços de lazer, as atividades de jogo e aposta estão entre as de maior potencial de geração de emprego, renda e tributos, especialmente quando associadas a diversões e hotelaria. Por isso, os cassinos são legalizados em quase todo o mundo livre (conceito que exclui os países islâmicos e socialistas). Além do Brasil, apenas 36 dos 193 países associados à ONU proíbem a instalação de casinos. Estamos na companhia nada invejável de Irã, Iraque e Afeganistão, que também restringem a liberdade de imprensa e os direitos das mulheres. A vanguarda do atraso.
O que diferencia o Brasil de tais países é a coerência da proibição neles vigente com a moralidade retrógrada que orienta toda a sua legislação. Em sentido oposto, temos uma Constituição que respalda amplamente a legalidade do jogo privado, mas sofremos os efeitos de uma interpretação moralista e estatizante do ordenamento jurídico.
A Constituição de 1988 erige a livre iniciativa e a livre concorrência como princípios fundamentais da atividade econômica, nos arts. 1º, inciso IV, 170, caput e inciso IV. Em complemento, o parágrafo único deste assegura a todos “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Na mesma linha liberalizante, o art. 173 trouxe a vedação ao exercício de atividade econômica pelo Estado em qualquer situação não prevista na própria Constituição, salvo se “necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Esse dispositivo é complementado pelo art. 177, que lista os casos excepcionais de monopólio de atividade econômica pelo Estado, sem incluir o jogo e a aposta.
Essa vedação é essencial à garantia da livre concorrência, pois a presença do Estado no ambiente empresarial traz um grande desequilíbrio em razão da fonte pública de recursos e garantia de solvabilidade à custa da sociedade.
Por fim, o art. 195, inciso III, da Constituição inclui “a receita de concursos de prognósticos”, uma das espécies de jogo e aposta, entre as fontes de receita da previdência social. Ou seja, não apenas ressalta a legalidade da atividade, como também a eleva ao patamar de socialmente relevante.
A interpretação coerente dos referidos dispositivos constitucionais permite a conclusão de já ser plenamente legal a atividade de jogo e aposta, pelo menos em qualquer modalidade que envolva prognósticos sobre resultados. Em consequência, devem ser consideradas revogadas as leis proibitivas, pois o espaço deixado pela Constituição é apenas o de regulamentar os concursos de prognósticos e garantir a livre concorrência.
Mesmo o texto do parágrafo único do art. 170, que prevê a necessidade de autorização em alguns casos, não permite concluir que possa haver vedações ou monopólios arbitrariamente estabelecidos.
Em sentido contrário, contudo, os três Poderes desconsideram o texto constitucional e ratificam a validade de normas como o art. 50, da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/41), que penaliza a atividade econômica do jogo, o Decreto-Lei nº 759/69, que estabelece o monopólio da Caixa Econômica Federal (CEF) na exploração de loterias, e a Lei nº 7.291/84, que estabelece um monopólio privado para as apostas em corrida de cavalo, o que já não tinha respaldo nem na Constituição revogada.
Confirmando a máxima de que o constituinte costuma ser mais avançado que o legislador, mesmo após a Constituição de 1988 continuaram a ser promulgadas leis regulando o jogo de forma monopolista e estatizante.
Em 1993, a Lei nº 8.672 (Lei Zico) criou os bingos com arrecadação parcialmente destinada às entidades esportivas, revogada sete anos depois; em 2006, com teor semelhante, a Lei nº 11.345; em 2013, a Lei nº 12.869, regulamentando as agências permissionárias de loterias da CEF. Até mesmo o Código Civil de 2002 ratifica o Código de 1916 e mantém a dívida de jogo na zona cinzenta de legalidade, pois seu art. 814 afirma não ser exigível e os respectivos pagamentos não ressarcíveis.
A previsão constitucional de exploração de atividade econômica pelo Estado, prevista no art. 173, depende da definição legal de um relevante interesse coletivo. Porém, nenhuma das características do jogo permite o enquadramento nesse conceito, pois não é uma atividade de infraestrutura ou um serviço essencial deficitário.
Para contornar essa necessidade de justificação para o exercício de uma atividade econômica, algumas leis descrevem o jogo e a aposta como serviço público, embora não tenham qualquer característica de essencialidade e universalidade. Tratam-se, tão somente, de atividade econômica de prestação de serviços de lazer, como dezenas de outras.
Por isso, são tributáveis pelo ISS (STF, RE nº 634.764), o que colide com o próprio conceito de serviço público, protegido por imunidade tributária constitucional, nos termos do art. 150, inciso VI, alínea a.
Esse artifício conceitual surgiu no art. 1º, do Decreto-Lei nº 204/1967, tendo sido ratificado quando do julgamento da ADI nº 4986, em 30/10/2020. Nesse acórdão, o STF afirmou o caráter de serviço público dos jogos e apostas e ratificou que os Estados também poderiam explorar loterias, mas não a iniciativa privada diretamente (sem delegação contratual).
As últimas leis que regularam o jogo, com restrições de exploração, foram a 13.756/18 e a 14.183/21, que a alterou. Tratam das loterias de apostas esportivas de quota fixa (quando o montante que o apostador vai receber já é conhecido no instante da aposta), prevendo contribuições sociais destinadas a inúmeros fundos orçamentários.
Embora não tenha sido expressa nesse sentido, prevaleceu a interpretação de que a Lei nº 13.756/18 autorizava as apostas esportivas apenas se a empresa exploradora tivesse sede no exterior, pois não houve autorização específica para estabelecimentos físicos no Brasil. Em consequência, além de desrespeitar o princípio constitucional da livre concorrência, ainda atentou contra o disposto no art. 219, da Constituição, por privilegiar as empresas sediadas no exterior.
A reação à legalização do jogo, que não foi superada pela clareza do texto constitucional, é basicamente pautada em dois argumentos falaciosos: o jogo provocaria vício e facilitaria a lavagem de dinheiro.
A maioria não pode ser impedida de se divertir nem ser privada dos empregos e tributos gerados por uma atividade apenas porque um pequeno grupo tem compulsão a gastar mais do que pode. Esse raciocínio vale para outros setores e meios de pagamento, como shopping centers e o próprio cartão de crédito. Todo os anos milhões de pessoas se endividam por gastar muito acima do seu orçamento, o que não justifica privar todos os demais dos meios e do direito de gastar seus recursos como entenderem melhor.
O mesmo argumento se aplica ao consumo do álcool, que é realmente viciante para a minoria propensa ao alcoolismo, mas constitui legítimo direito dos demais membros da sociedade e, por isso, não pode ser proibido.
Ainda mais incoerente é a crítica quanto à possível lavagem de dinheiro. Essa pode ocorrer em qualquer atividade, de empresas de consultoria genérica a hotéis, passando por escritórios de advocacia, como vimos no curso da Operação Lava Jato. Basta que não haja parâmetros externos confiáveis para os ganhos que aquele negócio proporciona.
Para afastar qualquer dúvida, bastaria que a legalização formal dos jogos, incluindo os cassinos, viesse associada a exigências como receita exclusiva por meios eletrônicos e auditoria externa para verificação da origem e destinação dos recursos.
O que realmente não faz sentido é nos privarmos dos investimentos, empregos e tributos que o jogo legalizado proporciona apenas em razão de mal fundamentadas objeções, enquanto os recursos continuam a ser drenados para o exterior.
Fernando Lemme Weiss
Advogado, mestre e doutor em Direito Público pela UERJ