VIE 29 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 00:54hs.
Ricardo de Paula Feijó, advogado no escritório Vernalha Pereira

O Judiciário brasileiro vai analisar se as loot box são jogos de azar

Em artigo que trata de ação da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente contra as loot box (caixas de prêmios) oferecidas por desenvolvedores de videogames, o advogado e mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná Ricardo de Paula Feijó analisa o possível enquadramento da modalidade como um jogo de azar. Na sua visão, não se caracteriza tal situação, embora admita que deva haver mais discussões a respeito do tema.

A discussão a respeito das loot box (caixas de prêmios) já ocorre em diversos países há alguns anos e finalmente chegou ao Brasil, por meio de ação ajuizada pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED contra empresas desenvolvedoras e hospedeiras de jogos.

Os loot box são mecanismos existentes em diversos jogos de videogame e consistem em caixas que podem ser abertas pelo jogador – mediante utilização de pontos por ele já conquistados no game – para ganhar itens especiais. Há uma variedade imensa do funcionamento desse mecanismo em cada jogo, mas essa é a ideia comum a todos eles. A existência desse artifício não é nova; o que mudou nos últimos anos foi a possibilidade de os jogadores comprarem com dinheiro real os pontos ou créditos do jogo para, com isso, abrirem uma maior quantidade de caixas-prêmio.

O debate que se instaurou mundialmente e, aparentemente, é trazido pela ANCED é o de que esse mecanismo configuraria uma espécie de jogo de azar, uma vez que o jogador não sabe exatamente o que vai ganhar quando coloca seus créditos comprados com dinheiro real. Como se percebe, há segundo essa tese dois elementos que caracterizariam os loot box como jogos de azar e, portanto, como atividade proibida – a aleatoriedade das recompensas e a utilização do dinheiro real.

A resposta ao dilema, entretanto, não é tão simples e a conclusão a que parece chegar a ANCED pode nem sempre ser verdadeira. É impossível generalizar todos os jogos de videogame e dar uma solução universal para todos eles, pois cada jogo possui um modelo próprio de loot box, ferramenta cuja forma de utilização varia muito. Para concluir se há efetivamente jogo de azar, é imprescindível a análise de cada mecanismo, atentando-se ao seu contexto e suas peculiaridades.

Isso porque, a caracterização da atividade como jogo de azar pela lei brasileira depende da presença de 3 requisitos: (i) prêmio; (ii) preponderância da sorte; e (iii) aposta de um bem. Nos termos do art. 50, §3º, da Lei de Contravenções Penais, o resultado do jogo deve decorrer preponderantemente da sorte. Ocorre que nem sempre se identificam os três requisitos nas loot box de videogames.

Tomemos como exemplo o aclamado jogo Counter-Strike: Global Offensive, jogado por mais de vinte milhões de pessoas em todo o mundo. Os jogadores ganham as caixas de prêmios (loot box) em decorrência da demonstração de habilidades ou em certas condições específicas. As caixas contêm um prêmio aleatório, que é uma skin (espécie de adesivos decorativos) a ser utilizada pelo jogador. Essas skins também podem ser adquiridas na loja da empresa dona do jogo, bem como podem ser compradas dos demais jogadores. Por isso, elas possuem valores reais e específicos. Assim, a abertura da loot box pode dar um prêmio de valores variados para o jogador. Já a abertura dessas caixas de prêmios depende do pagamento de dinheiro real para o jogo.

Em um primeiro olhar, pode-se dizer que haveria jogo de azar e que as loot box seriam iguais às máquinas caça-níqueis (slot machines), pois existe pagamento em dinheiro para a tentativa de se ganhar um prêmio concedido de forma aleatória. Porém, a realidade não é bem essa.

De um lado, não existe perspectiva de o jogador simplesmente pagar para abrir a caixa e não receber nada. O dinheiro dele necessariamente corresponderá a um produto, variando apenas o valor desse produto. Trata-se de situação idêntica aos jogos de cartas colecionáveis e de figurinhas de álbum de futebol, no qual se compra um conjunto de cartas ou figurinhas, mas sem saber exatamente quais estão sendo compradas – havendo diferença nos valores de cada figurinha em razão da sua raridade. É evidente que não se trata de jogo de azar e que a situação é distinta das máquinas caça-níqueis, em que o jogador pode perder tudo com uma aposta.

De outro, o jogador também não precisa colocar dinheiro real no jogo, pois ele também ganha skins durante o jogo, que podem ser comercializadas e geram créditos em sua conta virtual. Desse modo, ele pode utilizar esses créditos para abrir as caixas, sem nunca ter colocado um centavo de dinheiro real no jogo. Logo, não é necessária a aposta de um bem (dinheiro real) para abrir as caixas, descaracterizando a atividade como jogo de azar.

Esse exemplo nos mostra que a discussão a respeito da caracterização das loot box não é simples e não pode ser respondida de forma única, devendo haver a análise do mecanismo de cada jogo, sob pena de se banalizar o conceito de jogo de azar no Brasil e se flexibilizar o tipo previsto na Lei de Contravenções Penais.

Ricardo de Paula Feijó

Mestrando em direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná, com pesquisa voltada para a regulação dos jogos de azar. Advogado do Vernalha Pereira Advogados.