JUE 28 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 23:41hs.
Opinião - Amanda Rodrigues Alves, advogada criminalista

Jogos de azar: entre os bons costumes e a livre iniciativa

Há uma discussão nacional sobre a legalização de casas de jogos e cassinos, mas que necessita do respaldo do julgamento que irá ocorrer e que é abordado nesta coluna da Amanda Rodrigues Alves, Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Dom Helder e advogada criminalista, coproprietária do escritório Rodrigues Alves e Sella. A doutora aborda o histórico dos jogos, e traz os argumentos e efeitos que o julgamento proporcionará. Artigo completo publicado no portal DomTotal.

Certamente você já ouviu a expressão "jogos de azar". No Brasil, os jogos de azar são considerados contravenções penais, espécie de infrações penais de menor potencial ofensivo, com pena prevista de três meses a um ano, além de multa e perda dos móveis e objetos que decoram o local onde se dão os jogos.

A infração em questão encontra-se tipificada no artigo 50 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3688, de 1941) e considera como jogo de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; e c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. Nesse sentido, importante ponderar que, tanto aquele que explora o jogo como os apostadores e os ponteiros respondem criminalmente, desde que os jogos se deem em lugar público ou de acesso ao público.

Não obstante, os jogos de azar já terem sido outrora legalizados no Brasil, a última proibição contida no mencionado art. 50 da Lei de Contravenções Penais, ainda vigente, foi imposta no mandato do presidente Gaspar Dutra, em 1946. Tal restauração se deu através do Decreto-lei 9215, que se fundamentou, dentre outros, na moral e nos bons costumes e no fato de que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal, bem como a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração dos jogos de azar.

Apesar da proibição, os jogos de azar continuam sendo uma prática constante no país. Existem máquinas caça-níqueis e bancas de jogos de bichos em regiões centrais de grandes cidades, como é o caso da capital mineira. Da mesma forma, permanecem espalhadas as bancas de jogos de cartas, jogo do bicho e mesmo cassinos clandestinos, muitos deles aos olhos das próprias autoridades locais.

Por certo que a sociedade atual se difere daquela de meados do século 20. Vivia-se tempos de Estado social e de grande interferência do Estado nas relações pessoais. Atualmente, o país encontra-se em uma era mais liberal, em que princípios da economia ganham força, entre os quais a livre iniciativa, tendo o indivíduo autonomia para exercer qualquer trabalho ou ofício, sem ingerência do órgão estatal, que deve se ater à regulamentação, de modo a resguardar o bem comum.

Assim, a regra é a liberdade do exercício do trabalho, a limitação é uma exceção e como tal somente pode ser invocada se lastreada em princípios mais relevantes do que a própria livre iniciativa e a liberdade individual.

Nota-se que a proibição do jogo se funda em preceitos religiosos e em um moral que não mais diz respeito à atualidade. Ninguém, ou pelo menos a maioria das pessoas, nos dias de hoje, se sente moralmente ofendido porque existe uma banca de jogo no boteco da esquina. As pessoas que ali jogam têm liberdade para decidir se pretendem jogar e quanto desejam desembolsar com as apostas.

É exatamente por isso que existem projetos de lei visando regulamentar os jogos de azar no país, entre os quais o projeto de lei do Senado 186, de 2014, de autoria do senador Ciro Nogueira, que se encontra pronto para deliberação em plenário desde 2019. A proposta, além de abarcar a autorização dos jogos de azar em todo o país, reconhecendo o seu valor histórico e cultural e a sua finalidade social, também esclarece quais são os jogos de azar, como são explorados, a destinação dos recursos arrecadados, e, por fim, ainda define as infrações administrativas e criminais decorrentes da violação das regras concernentes à exploração desses jogos.

A temática é tão relevante que a discussão acerca da descriminalização da conduta chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do Recurso Extraordinário 966177, depois que a turma recursal do estado do Rio Grande do Sul reconheceu a atipicidade do artigo 50 do Decreto Lei 3688, ou seja, considerou que o jogo de azar não pode ser tido como infração penal, pois os argumentos que justificaram a criminalização não possuem amparo na Constituição de 1988.

Em decisão proferida em novembro de 2016, o STF reconheceu a repercussão geral no caso, haja vista tratar-se de questão relevante do ponto de vista econômico, jurídico, social e político. Em virtude disso, as ações penais que versam sobre jogos de azar encontram-se suspensas no país até que sobrevenha uma decisão definitiva da Corte Suprema.

De fato, a questão é controversa e precisa ser debatida, vez que garantias fundamentais vêm sendo relativizadas por questões morais e religiosas que, como muito bem ressaltado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não se coadunam com a atual Constituição Federal, que tem nas liberdades uma forte matriz.

 

Amanda Rodrigues Alves
Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Dom Helder Escola de Direito. Membro das comissões "Advocacia Criminal" e "OAB vai à Escola" da OAB/MG. Advogada criminalista e coproprietária do escritório Rodrigues Alves e Sella Sociedade de Advogados.