JUE 28 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 23:49hs.
Henrique Chamas, Raphael Andrade e Felipe Ferreira, advogados

Loot boxes e o direito brasileiro: um alerta para a urgente necessidade de regulamentação

Os advogados Henrique Chamas, Raphael Andrade e Felipe Ferreira, do escritório Andrade Chamas, apontam em artigo que a oferta de loot box (caixa de prêmios) por empresas de videogames são objeto de polêmica e “refletem a necessidade de uma regulamentação clara de jogos e apostas”. O tema esquentou com a ação movida pela Associação dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente contra grandes desenvolvedoras alegando que elas utilizam técnicas de jogos de azar diante de crianças e adolescentes.

O game FIFA sempre foi um dos mais populares e rentáveis jogos de videogame em todas as plataformas. De todo modo, em 2009, a Electronic Arts (EA) – desenvolvedora do jogo – iniciou um processo para elevar a produtividade e a lucratividade gerada pela série a um novo patamar, com a criação do modo Ultimate Team, no qual a cena competitiva do game é baseada, em linhas gerais, em um desafio para que o jogador monte o seu próprio time, a partir de “pacotes” que contêm cartas aleatórias de jogadores de futebol.

Estes pacotes são adquiridos por moedas virtuais conquistadas a partir do desempenho dos gamers nas partidas ou por microtransações, consistentes na aquisição deste crédito virtual por dinheiro real, o que, muitas vezes, significa um atalho para a construção de uma equipe com os principais jogadores do mundo.

Dessa forma, dentro de um jogo pago, a EA encontrou, na venda dos pacotes, uma relevante fonte de receita, tanto que replicou o popular modo de jogo para outras franquias (como, por exemplo, Madden NFL, UFC e NBA). O resultado foi tão eficaz que, em 2020, a desenvolvedora lucrou 1,49 bilhões de dólares com o modo de jogo Ultimate Team, considerando todos os seus games de esporte.

Esta mecânica, conhecida como loot boxes, não é utilizada apenas pela EA. Também presente em games como Overwatch e Free Fire, as loot boxes representam a possibilidade, para os gamers, de adquirir um pacote de itens aleatórios com moedas virtuais conquistadas no próprio jogo ou por meio do pagamento em dinheiro real, sendo que, dentre tais itens, incluem-se aqueles capazes de melhorarem o desempenho do jogador. Dessa forma, principalmente nos jogos gratuitos (free-to-play), a prática das loot boxes constitui a principal fonte de receita das desenvolvedoras.

Entretanto, as loot boxes são também objeto de polêmica e refletem a necessidade de uma regulamentação clara de jogos e apostas, até mesmo para os envolvidos indiretamente com este mercado, como é o caso da indústria de jogos eletrônicos.

Na última quinta-feira (25/02), a imprensa noticiou a propositura de diversas ações civis públicas pela Associação dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) contra grandes desenvolvedoras de jogos eletrônicos, como EA, Riot Games, Konami e Ubisoft, alegando que estas companhias utilizam técnicas de jogos de azar diante de crianças e adolescentes, com a finalidade de fidelizar esta clientela, em razão da venda de loot boxes nos games.

Por conta da equiparação da exploração de loot boxes à exploração de jogos de azar, a ANCED pleiteia, então, a cessão imediata desta prática nos jogos desenvolvidos pelas rés e uma indenização por danos morais de natureza individual e coletiva, cuja soma dos valores atinge a marca de, aproximadamente, 20 bilhões de reais.

Distribuídas junto às Varas da Infância e Juventude de Brasília, as ações propostas pela ANCED são pioneiras com relação à apreciação, pelo Poder Judiciário brasileiro, da relação entre loot boxes e jogos de azar. Os argumentos são construídos mediante as críticas que esta mecânica recebe pela comunidade gamer, no sentido de que as loot boxes criam uma vantagem injusta para quem gasta mais dinheiro no jogo, fomentando o chamado pay-to-win.

Assim, considera-se a compra de loot boxes como uma espécie de jogo de azar virtual. Para esta definição, valem-se de lição apresentada pelo psicólogo inglês Mark Griffiths, que considera esta caracterização como plenamente possível, na medida em que (i) a troca é determinada por um evento futuro, cujo resultado, no momento da aposta, é desconhecido; (ii) o resultado é determinado pelo acaso; (iii) há uma troca de dinheiro sem a introdução de um trabalho produtivo de nenhum dos lados; e (iv) as perdas podem ser evitadas não participando da atividade .

A ANCED ainda afirma que os games, com esta mecânica, expõem os seus jogadores a um verdadeiro cassino, que os obriga a dispender quantias substanciais, de modo corriqueiro, para que se mantenham competitivos. Neste sentido, destaca que a prática contraria os ditames basilares do ordenamento jurídico brasileiro, que, tanto na Constituição como no Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece o princípio da proteção integral da criança e adolescente, do qual se extrai deveres legais que visam coibir a exposição deste público a práticas abusivas, como aquela da qual acusam as desenvolvedoras.

É a primeira vez que um tribunal brasileiro se vê em vias de apreciar a situação relacionada às loot boxes, havendo de ponderar a perspectiva apresentada pela ANCED contra as alegações das desenvolvedoras, que afirmam não existir qualquer relação entre esta mecânica e a prática de jogos de azar, de modo que as loot boxes são opcionais do game, dotadas de caráter lúdico.

Em solo estrangeiro, a discussão é mais recorrente e introduz debates relevantes sobre a regulamentação das loot boxes e de uma eventual necessidade de proibição.

Os casos mais emblemáticos neste sentido ocorreram na Holanda e na Bélgica . Em ambos os países, os órgãos reguladores responsáveis pelo controle e fiscalização de jogos e apostas multaram a EA em quantias milionárias, em função de a venda de pacotes de jogadores no modo Ultimate Team ser considerada uma violação à regulamentação estabelecida, proibindo, também, que a mecânica continuasse a ser utilizada no game.

O impacto da decisão tomada em solo belga e holandês foi tamanho que a EA estudou bloquear o Ultimate Team em países que contassem com legislações menos permissivas em relação a jogos e apostas , ainda mais diante da propositura de ações semelhantes à proposta pela ANCED no Brasil em outros países, como França, Canadá e Estados Unidos.

A EA não é a única desenvolvedora que sofre com problemas judiciais relativos à exploração de loot boxes e a zona cinzenta nas quais se inserem, quando comparadas a outras modalidades de jogos e apostas.

Também na Bélgica, a Comissão dedicada à regulação e fiscalização de jogos e apostas no país apontou que as loot boxes presentes no Overwatch (desenvolvido pela Blizzard) e no Counter-Strike: Global Offensive (desenvolvido pela Valve) podiam ser comparadas a jogos de azar , mas as desenvolvedoras tomaram medidas para adaptar os games e desabilitar os pacotes com itens aleatórios e transações com dinheiro real dentro dos jogos, medida que foi acompanhada por outras desenvolvedoras, como a 2K e a Konami, que, preventivamente, retiraram a mecânica dos seus respectivos jogos. Com isso, todas evitaram a penalização com multas, o que ocorreu com a EA pela manutenção da mecânica no modo Ultimate Team.

O exemplo belga acima apontado demonstra um interessante esforço para uma composição dos interesses entre autoridades e desenvolvedoras, em favor de uma regulamentação que não acarrete prejuízos e desgastes para nenhuma das partes.

Em países asiáticos, as discussões se mostram ainda mais maduras, principalmente porque China e Japão foram os primeiros a se verem obrigados a lidar com a popularização de loot boxes. As autoridades de ambos os países editaram normas bastantes incisivas, com uma vedação expressa à exploração desta mecânica pelas desenvolvedoras, que, por outro lado, se esforçaram em procurar brechas nas regras proibitivas para manterem sua fonte de receita, caso da Blizzard, que, no Overwatch, parou de vender diretamente os pacotes de itens aleatórios e passou apenas a presentear com as caixas os gamers que efetuassem a compra de moedas virtuais utilizando dinheiro real.

Desse modo, nestes países, atualmente se observa um movimento em favor de uma autorregulamentação e do desenvolvimento de normas unindo as autoridades e as desenvolvedoras. Com isso, a proibição e a aplicação de multas milionárias não foi a melhor e nem a única alternativa encontrada pelas autoridades e, em realidade, viu-se um movimento em favor de implementação de boas práticas para a exploração das loot boxes.

O arcabouço regulatório destes países foi redesenhado para que fosse vedada uma exploração predatória das loot boxes, passando a permitir a sua existência desde que, dentre outras obrigações, as desenvolvedoras se obrigassem a prestar informações sobre a probabilidade exata de ganho dos itens; limitação do número de pacotes a serem adquiridos em um dado intervalo de tempo; aumento na probabilidade de obtenção de itens que realmente assegurem uma melhoria no desempenho; e restrições rígidas para a aquisição de loot boxes por crianças e adolescentes.

Atualmente, no Brasil, vivemos uma intensa expectativa pela regulamentação do mercado de jogos e apostas, sobretudo com o advento da Lei nº 13.756/18 - responsável pela criação da modalidade lotérica de apostas de quotas fixas relativas a eventos esportivos e a fixação de um prazo de 2 anos para o Ministério da Economia regulamentá-la – e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de setembro do ano passado, a qual autorizou os estados a explorarem e regulamentarem loterias.

Apesar das sinalizações positivas, a verdade é que situações como a das loot boxes apontam que o mercado de jogos ainda atravessa um ambiente nebuloso dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o que alerta para a necessidade de uma regulamentação clara, para reduzir a insegurança jurídica e delimitar a atuação dos agentes econômicos envolvidos neste mercado.

Quando falamos em gaming, estamos falando em uma das principais indústrias de entretenimento do mundo, que inclui tanto jogos eletrônicos como o mercado de jogos e apostas. Conferir previsibilidade, delimitando estruturas administrativas e regulatórias com competências bem definidas e buscar incluir todos os agentes no desenho desta regulamentação é essencial para reforçar melhores práticas.

O que é certo, no entanto, é que um fenômeno tão complexo, do qual as loot boxes são exemplo, não pode ficar, unicamente, restrito à análise em um processo judicial. A propositura das ações aqui apresentadas alerta para um necessário avanço de nosso ordenamento jurídico, de modo a regulamentar com precisão esta realidade, em favor tanto da indústria como do público consumidor.

Henrique Chamas – Sócio em Andrade Chamas Advogados. Bacharel e Mestre em Direito Tributário pela USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Raphael Andrade – Sócio em Andrade Chamas Advogados. Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Comercial pela USP.

Felipe Ferreira – Advogado associado em Andrade Chamas Advogados. Bacharel em Direito pela FDRP/USP.