Este ano foi o 75º aniversário da proibição geral dos jogos de azar no Brasil: tornando-o um dos poucos países não muçulmanos com tal proibição e o único membro da Organização Mundial do Turismo além de Cuba a fazê-lo. A última rodada de roleta foi jogada no cassino do icônico Copacabana Palace Hotel na noite de 30 de abril de 1946, quando o presidente Dutra emitiu um decreto confirmando a proibição.
Desde então, a proibição geral foi incorporada ao polêmico artigo 50 da Lei de Contravenções Penais do Brasil. Esta lei define jogos de azar como aqueles em que o resultado dos jogos depende exclusiva ou predominantemente da sorte e não autoriza a realização desses jogos em locais públicos ou acessíveis ao público, com entrada obrigatória ou não.
Nesse contexto, a internet, que pode ser considerada um espaço público ou acessível ao público, tem atraído muita discussão, especialmente porque centenas de operadores estrangeiros de jogos e apostas online atualmente acessam o mercado brasileiro e aceitam apostas de apostadores brasileiros.
Uma interpretação conservadora da Lei de Contravenções Penais realmente consideraria a internet como um espaço público ou acessível ao público, especialmente a partir de 4 de agosto de 2015, quando a Lei Federal nº 13.155/2015 alterou o parágrafo 2º do artigo 50 das Lei de Contravenções Penais, que especifica que os jogadores que apostam online podem ser forçados a pagar uma multa.
Atualmente, as únicas formas legais de jogos de azar autorizados no Brasil são loterias públicas (tanto em nível federal quanto estadual), incluindo raspadinhas e apostas em corridas de cavalos em pistas autorizadas. As apostas esportivas de odds fixas on-line ou terrestres devem se juntar a essa lista, dependendo da regulamentação a ser emitida em 2021, conforme prometido pelo governo federal, e sujeita a licenciamento.
Conclui-se do exposto que o fator decisivo para determinar se um jogo é considerado “azarado” no Brasil é até que ponto ganhar ou perder depende da sorte ou habilidade. Sempre que o resultado depender predominantemente da habilidade - mesmo que a sorte seja um fator no resultado - o jogo não será considerado jogo de azar e não estará sujeito às restrições da Lei de Contravenções Penais.
O reconhecimento da distinção entre jogos de habilidade e jogos de azar está cada vez mais presente no Brasil atualmente. Os jogos de habilidade são geralmente chamados de “mind sports” (esportes da mente, em português). Nesse sentido, o governo federal brasileiro aprovou recentemente a Associação Brasileira de Xadrez para Deficientes Visuais, a Confederação do Texas Hold’em e a Federação Brasileira de Bridge, reconhecendo que tais jogos são esportes.
Diante do exposto, existem dois projetos de lei principais que buscam legalizar todas as formas de jogo no Brasil - um proposto no Senado e outro na Câmara dos Deputados. Nenhum dos projetos foi aprovado pela Casa onde foram respectivamente propostos:
Projeto da Câmara dos Deputados nº 442/1991
• Busca legalizar várias formas de jogos de azar, tanto online quanto terrestres.
• Estabeleceria um registro para viciados em jogos de azar. Um indivíduo será incluído por escolha ou ordem judicial. Essas pessoas não podem jogar.
• As entidades licenciadas devem ser: constituídas de acordo com a legislação brasileira, com sede e administração no país, tecnicamente capazes de conduzir a atividade e financeiramente e economicamente credíveis.
• Os acionistas/gerentes também devem fornecer documentos como declarações de imposto de renda e certificados de liquidação e não ter antecedentes criminais.
• Os servidores das operadoras de jogos online devem estar localizados no Brasil.
• Para cassinos físicos: o número de estabelecimentos por estado varia entre um e três e é baseado no número de habitantes de cada estado. Com base na população atual de cada estado, São Paulo pode ter até 3 cassinos, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia podem ter até 2 cassinos cada e outros estados brasileiros podem ter 1 cassino cada.
• Este limite não se aplica a resorts hidrominerais onde os cassinos já operaram (ou seja, certas cidades no Estado de Minas Gerais).
• Nenhum grupo pode receber duas licenças no mesmo estado, nem mais do que cinco licenças no país. As licenças serão concedidas por 30 anos e renováveis por mais 30 anos.
Projeto de Lei do Senado nº 186/2014
• Busca legalizar várias formas de jogos de azar, tanto online quanto terrestres.
• Fornecedores devem cumprir as regras do Banco Central quanto a: identificação de jogadores, comunicação de transações financeiras e manutenção de registros.
O primeiro desenvolvimento concreto no sentido da legalização do jogo e das apostas surgiu no final de 2018, com a promulgação da Lei Federal n.º 13.756/2018, que legaliza as apostas esportivas com odds fixas, tanto físicas como online. A lei define as apostas esportivas de probabilidades fixas como uma forma de loteria que compreende um sistema de apostas relacionado com eventos esportivos reais (e, portanto, em princípio, não com eventos esportivos eletrônicos), em que os ganhos são definidos no momento em que a aposta é colocada.
No final de 2020, o regulador brasileiro (SECAP - uma divisão do Ministério da Economia) anunciou planos para implementar o regulamento das apostas esportivas com odds fixas até julho de 2021, promessa que não foi cumprida.
Em seu último projeto de decreto divulgado no ano passado, a SECAP optou pelo modelo de licenciamento de concessão dentre as três abordagens possíveis (as outras duas abordagens sendo o licenciamento de autorização - que implicaria um número ilimitado de licenças - ou o licenciamento de monopólio).
De acordo com o modelo de concessão, as operadoras terão de fazer lances competitivos entre si para “ganhar” uma das poucas licenças em número limitado. Inicialmente, esperava-se que no máximo 30 operadoras pudessem funcionar no Brasil ao mesmo tempo. No entanto, os últimos rumores indicam que o número total de licenças disponíveis deve ser entre 50 e 100.
Mas, considerando que cerca de 500 sportsbooks estrangeiros estão atualmente operando no mercado brasileiro, mesmo esse aumento no número de licenças pode não ser suficiente. Ainda há esperança, porém, de que este vento possa mudar de direção.
Sessenta e seis empresas responderam à recente Solicitação de Informações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e 38 foram selecionadas para receber Solicitação de Proposta para seleção de empresa ou consórcio de empresas para auxiliar o BNDES na estruturação do setor de apostas de quota fixas – odds - no Brasil, que incluiria trabalhar com a SECAP na definição do modelo de negócios e arcabouço legal mais adequados.
A notícia é que os candidatos qualificados ainda não haviam recebido tais RFPs em meados de julho e esta é a razão pela qual a SECAP não pôde honrar sua promessa de implementar os regulamentos. Isso pode acontecer agora nos próximos meses.
Além de não definir o modelo de licenciamento das apostas esportivas com odds fixas no Brasil, a Lei nº 13.756/2018 também foi bastante criticada pela indústria por contemplar uma taxa sobre o faturamento (3% para operações online e 6% para operações terrestres), além dos impostos normalmente pagos pelas empresas que operam no Brasil.
Felizmente, isso mudou em julho de 2021, quando da Lei nº 13.756/2018, por meio da Emenda à Medida Provisória nº 1.034/2021, que foi convertida na Lei nº 14.183/2021, pela qual a receita bruta do jogo (GGR), ao invés de receita total/volume de negócios, tornou-se a base para o cálculo do imposto adicional pago pelos operadores licenciados.
Conforme a lei, agora o pagamento (sem limitação) e o imposto de renda retido na fonte correspondente (cobrado à alíquota de 30%) serão deduzidos da receita total da operadora para formar a base tributária.
O imposto do jogo agora aplicável pode ser dividido da seguinte forma:
No que diz respeito às ações de fiscalização, até agora se concentraram apenas nas operadoras locais e nas questões de lavagem de dinheiro. Uma vez que as empresas de cartão de crédito brasileiras estão sujeitas aos controles estabelecidos na Lei Brasileira de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), que considera a lavagem de dinheiro um crime quando o dinheiro lavado deriva de quaisquer atividades ilegais (portanto, não apenas de crimes, mas também de contravenções penais), alguns deles não autorizam os clientes a utilizar os seus cartões de crédito em sites de jogos e apostas.
Uma vez que as apostas esportivas de odds fixas sejam regulamentadas e as licenças comecem a ser emitidas, é provável que ações contra operadores offshore que não são licenciados localmente aumentem significativamente. Além da frente legislativa, os jogos e apostas no Brasil também foram impactados por decisões judiciais, principalmente as emanadas do Supremo Tribunal Federal (STF). Os tribunais do Estado do Rio Grande do Sul são geralmente de opinião de que a Constituição Federal, que foi promulgada após a Lei de Contravenções Penais que proíbe os jogos de azar, essencialmente revogou essa lei.
Nesse sentido, esses tribunais emitiram decisões permitindo que os estabelecimentos que exploram jogos de azar permaneçam abertos no estado (com algumas restrições até que isso seja definitivamente decidido).
O assunto foi levado ao STF e considerado “repercussão geral”, o que significa que a decisão será vinculativa para todos os tribunais brasileiros. Todos os processos de primeira instância estão suspensos até que o caso principal seja julgado. Se o STF decidir que a restrição ao jogo é de fato inconstitucional, todas as formas de jogo poderiam, potencialmente, ser legalizadas sem regulamentação.
O caso no STF e os projetos mencionados nesta coluna estão sob revisão há muito tempo e são extremamente controversos. A decisão do STF, que pode suspender todas as restrições aos jogos de azar no Brasil, era esperada para 7 de abril de 2021, mas foi adiada indefinidamente. À luz das interrupções causadas pelo surto da pandemia de covid-19, é incerto se haverá um grande progresso nessas questões nos próximos meses.
Outra importante decisão do STF proferida no final do ano passado e que teve grande impacto foi a deliberação do tribunal por unanimidade pelo fim do monopólio da União sobre as loterias. Em sua decisão o STF reconheceu a competência da União Federal, consagrada no inciso XX do artigo 22 da Constituição Federal de 1988, para legislar sobre consórcios e sorteios (inclusive loterias), mas que tal competência não exclui a competência dos Estados de explorar e regular loterias próprias.
Após essa decisão, vários estados brasileiros tomaram as medidas necessárias para lançar suas próprias loterias. No entanto, o governo federal quer limitar as apostas nessas loterias estaduais. Nesse sentido, espera-se que a SECAP publique em breve portaria que estabeleça regras para a criação de loterias e sistemas de apostas esportivas em nível estadual.
Um deles é a adoção de mecanismos que impeçam apostas de outros estados da federação. Um dos objetivos da SECAP é garantir que a criação de loterias estaduais não esvazie as concessões federais do setor.
Além disso, a decisão do STF não é apenas uma vitória importante para os estados brasileiros que têm explorado suas próprias loterias, mas também pode impactar potencialmente a regulamentação e exploração das apostas esportivas com odds fixas no Brasil, uma vez que, como mencionado anteriormente, elas são consideradas por lei como modalidade de loteria.
Isso significa que - pelo menos em tese - os estados brasileiros poderão, a partir da decisão do STF, oferecer qualquer modalidade de sorteio já existente na esfera federal. Portanto, como as apostas esportivas de odds fixas são uma forma de loteria, os estados brasileiros podem ter impacto no programa de licenciamento federal ao conceder licenças a operadoras em nível estadual.
Resulta do exposto que as indústrias de jogos, apostas e loterias estão ganhando cada vez mais força no Brasil. Isso pode ser intensificado agora que o senador Ciro Nogueira, que nos últimos anos liderou a legalização de todas as formas de jogo no Brasil, foi nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro como Ministro-Chefe da Casa Civil. Teremos que esperar para ver.
Neil Montgomery
Sócio fundador e Gerente do escritório de advocacia brasileiro Montgomery & Associados, no qual dirige o grupo de esportes da mente, jogos, apostas e loteria. A empresa, pioneira no modelo de negócios inovador Lean Full Service - LFS®, tem sede em São Paulo e está presente no Rio de Janeiro e em Londres. É o único escritório brasileiro de advocacia full service com uma equipe dedicada e especializada em jogos e apostas. Neil representa o Brasil como um membro geral da IMGL, é um autor publicado e palestrante regular em eventos internacionais de jogos e apostas. Trabalhou como advogado em Londres e São Paulo e se especializou em assessorar empresas multinacionais em investimentos e negócios no Brasil e empresas brasileiras em expansão de seus negócios no exterior.