GMB - Conte um pouco sobre a sua carreira dentro do Direito Desportivo:
Victor Targino - Sempre procurei direcionar minha carreira para o entretenimento, em especial o esporte e os jogos de azar. Ainda na graduação, publiquei alguns trabalhos dedicados à regulamentação dos cassinos do Brasil e à abordagem regulatória acerca do jogo do bicho e sua intrínseca relação à cultura brasileira, mas decidi que o objetivo seria ingressar na indústria desportiva. Concluí a Pós Graduação em Direito Desportivo em 2015, ano em que fui trabalhar no Corinthians, mais especificamente em Direito do Trabalho aplicado ao Esporte.
Em 2016, venci o Prêmio Valed Perry, do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, com uma monografia voltada ao desenvolvimento do Handebol no Brasil (sugerindo a aplicação do modelo da entidade híbrida desportiva - Single-Entity, como originalmente adotado pela Major League Soccer, nos EUA). Em 2018, concluí o Master em Gestão Esportiva na Espanha, no ISDE, e, no início de 2019 surgiu o convite para trabalhar no Santos Futebol Clube, onde fiquei até outubro de 2020, quando migrei para os eSports (Netshoes Miners). No mesmo ano, decidi retomar as pesquisas em relação à regulação das apostas e jogos de azar e publiquei um trabalho comentando a Lei das Apostas Esportivas no Brasil.
No começo de 2021, publiquei um artigo na Índia, em coautoria com Jaya Suri Phalpher, traçando paralelos entre as legislações e os cenários das apostas esportivas em ambos os países. Hoje, faço parte do Núcleo de Apostas Esportivas da Academia Nacional de Direito Desportivo.
O projeto de regulamentação das apostas esportivas tem passado por alguns ajustes, como a alteração na tributação desses jogos. Esse é considerado um avanço para o desenvolvimento do mercado de apostas no Brasil?
Não tenho dúvidas de que a alteração na tributação das apostas foi muito positiva para o futuro desenvolvimento do mercado no Brasil. Substituir a redação original da lei (que tributava todo o produto = Turnover) para a tributação pelo GGR (Gross-Gaming Revenue, ou seja, tributação após a dedução dos prêmios pagos) representa enorme adequação ao modelo de negócios visto globalmente como mais atrativo aos operadores. Um colega que creio ter antecipado essa necessidade foi o Udo Seckelmann, advogado brasileiro que sinalizou num artigo acadêmico, há algum tempo, que o GGR traria ao Brasil "as melhores práticas internacionais (tais como Reino Unido, Espanha e Dinamarca)", citando, na oportunidade que Portugal estaria passando por dificuldades em combater o jogo ilegal em razão da adstrição ao modelo de Turnover. Portanto, é um avanço.
Quais outros pontos do projeto de regulação das apostas você acredita que deveriam ser modificados?
Tanto a lei, quanto o projeto regulatório, merecerão aprimoramentos. Caberá aos stakeholders do setor, tão logo a regulação ocorra, identificar, sinalizar e propor as melhorias necessárias, à medida que a atividade se desenvolver. Ora, à exceção do Turfe, o Brasil fechou os olhos para o mercado de jogos de azar e apostas por quase 1 (um) século, então estamos muito atrás do resto do mundo em diversos aspectos, como na formação de uma cultura de jogo responsável, no refino das práticas regulatórias e fiscalizatórias, ou, mesmo, na criação de jurisprudência a partir de litígios cotidianos. Imaginemos, por exemplo, se um menor adentra a uma casa, faz uma aposta e ganha. O operador não vai querer pagar, alegando que o contrato é nulo. Ao mesmo tempo, o operador foi negligente ao deixar o menor adentrar ao recinto, gastar e ganhar. E se não tivesse ganho, devolveria o dinheiro? Se assim podemos dizer, é tudo relativamente novo no Brasil, então haverá, certamente, muito espaço para modificações e aperfeiçoamentos.
Para não ficar em cima do muro, porém, alguns pontos sensíveis poderiam ter sido melhor abordados pelo legislador e merecerão muito cuidado por parte do órgão regulador:
(i) o combate à ludopatia (vício no jogo) por meio da edição de políticas públicas de redução de danos, o que é muito chamado no exterior de "jogo responsável”.
(ii) estabelecer e exigir padrões elevados de governança e transparência das empresas interessadas em explorar o setor, por meio de modelo de concessão (eis que possibilita a imposição de obrigações contratuais aos concessionários, cujo descumprimento levará à revogação da licença), a fim de se coibir e repreender a associação do segmento à lavagem de dinheiro e à evasão de divisas.
Com o cenário que temos atualmente, acha que a indústria de apostas brasileira atrairá empresários internacionais e também dará abertura para que o nacional consiga se estabelecer entre os grandes?
A cultura brasileira sempre foi muito acostumada aos jogos e apostas, seja em razão da esperança na obtenção de riquezas abruptas, num sonho de ascensão social, seja porque a formação da nossa sociedade teve muita influência latina, sobretudo portuguesa e espanhola, e norte-americana, localidades em que jogar e apostar é parte da cultura popular há séculos. A história nos mostra que tempos de proibição total sempre alternaram com tempos de tolerância total (desregulação jurídica ou ausência de repressão prática; ainda que contravenção penal, o jogo do bicho é facilmente jogado e pouco reprimido no Brasil). Nesse misto de altos e baixos, houve espaço para exceções legislativas, como as loterias, exploradas em Portugal pela Santa Casa de Misericórdia desde o Século XVIII e no Brasil pela Caixa Econômica Federal desde a década de 1970, como perfeita mostra de que, mesmo em tempos de proibição, o jogo e as apostas permanecem tão enraizados na cultura popular que algo há de ser regulamentado pelo Poder Público.
Assim, o potencial enorme que o Brasil possui, tanto por sua cultura, quanto por sua dimensão continental, certamente atrairá o investimento estrangeiro sem que isso se demonstre predatório ao empresariado brasileiro. A estabilidade e o desenvolvimento do setor dependem, porém, do interesse do poder público em coibir ou inviabilizar a clandestinidade, criando-se mecanismos de bloqueio e repressão a casas, sites e aplicativos ilegais e/ou baseados exclusivamente no exterior, além de estabelecer um sistema regulatório eficaz para evitar práticas concorrenciais nefastas ou manipulação de resultados desportivos, por exemplo.
No segundo trimestre deste ano, a IBIA relatou cinco casos de apostas suspeitas na América do Sul, sendo todos eles relacionados ao Brasil (4 no futebol e 1 no tênis). A regulamentação do setor incentivará a criação de entidades supervisoras de integridade esportiva e que inibem casos como esses?
Apesar de a preservação da integridade esportiva já ser de grande interesse de todos os "stakeholders" envolvidos no esporte (clubes, torcedores, ligas, federações, patrocinadores, empresas de transmissão etc), sem dúvida a regulamentação das apostas por aqui somará positivamente aos esforços no combate ao "match-fixing". Ou seja, é mais um segmento econômico que vai se interessar em dialogar com as autoridades em busca de implementar e aprimorar os mecanismos de preservação da lisura desportiva.
O Brasil pode se tornar uma potência nas apostas esportivas? Por quê?
Já é. Mesmo com o segmento absolutamente desregulado (a Lei 13.765/18, promulgada há quase três anos, ainda aguarda a tão esperada regulação), o Brasil já desponta como um gigante no mercado latino-americano. Há pesquisa de 2020 indicando que o mercado de apostas brasileiro movimenta mais de R$ 1 bilhão por ano. Os fatores são diversos, desde a dimensão continental, já apontada, como os culturais (não apenas o jogo e a aposta fazem parte da cultura, mas o esporte é completamente intrínseco à sociedade brasileira). Quem nunca se deparou com a pergunta "que time você torce?" ou "vamos fazer um bolão da Copa?". Torcer e apostar são condutas muito próximas, que mexem com nosso emocional desde as nossas mais primitivas sensações. E nossos pais e avós, de certa forma, nos acostumaram a lidar com isso como parte de nosso cotidiano. A imprensa e os mais diversos setores empresariais brasileiros, também.
Qual a sua visão sobre o PLS383 sobre regulamentar os eSports no Brasil por meio de federações e confederações que não possuem vínculo com o mercado em questão? Acredita que esse seja o melhor caminho para regular os esportes eletrônicos?
A criação de figuras sem qualquer vínculo comunitário com o segmento, apenas com o intuito de copiar o antigo modelo desportivo tradicional e/ou de estabelecer uma regulação política, classista, sobre uma atividade econômica privada não pode ser o melhor caminho. Pelo contrário, a abordagem do PLS383 fere, respeitosamente, a origem dos eSports, que emergiram da relação muito próxima entre desenvolvedoras e/ou publicadoras (publishers) de jogos (empresas privadas com ânimo de lucro) e de suas comunidades de jogadores ansiosos por atribuir natureza competitiva ao que inicialmente era uma prática lúdica ou de mero lazer. E esse nível competitivo, organizado pelas próprias desenvolvedoras ou publishers se mostrou extremamente lucrativo. Trata-se, na origem, de um modelo de negócios, algo totalmente diferente do que originou o esporte tradicional contemporâneo, cujas raízes emergiram da associação de pessoas (sem ânimo de lucro) interessadas em determinada prática desportiva. E tais pessoas foram criando associações para congregar os praticantes a nível nacional, depois a nível internacional, a fim de uniformizar as regras e viabilizar as competições entre pessoas de diferentes localidades.
Em outras palavras: cada modalidade de eSports é um produto, é um jogo, é um negócio de determinada desenvolvedora ou publisher. Muitos destes jogos concorrem entre si por fazerem parte do mesmo gênero e/ou atingirem o mesmo público alvo. É ilógico conceber uma federação desportiva abrangendo produtos concorrentes. E não é economicamente razoável a criação de uma federação para cada jogo (como se o NBA Live, da EA Sports, tivesse uma federação e o NBA 2k, da 2kSports, concorrente, tivesse outra; ou a mesma). O segmento se tornaria oneroso, engessado e, na prática, inviabilizaria o modelo de negócios propostos pelas respectivas desenvolvedoras ou publishers.
Fonte: Exclusivo GMB