As recentes modificações trazidas pela Lei nº 14.183/2021 alteraram pontos fulcrais da Lei nº 13.748/2018, a fim de tornar as apostas esportivas de quota fixa (AQF) viáveis economicamente para a exploração comercial, como dispõe a sua própria lei de criação (artigo 29, caput, da Lei nº 13.748/2018). Há uma série de pontos, porém, não de menor importância, que merecem ser ainda versados nas esferas legislativa e regulatória para que se tenham pressupostos sólidos, seja no campo econômico, seja no campo social e jurídico, para uma adequada estruturação da indústria.
Nesse sentido, mister, no presente, tratar das questões relacionadas ao regime de competências entre uma lei geral — e federal — e as recorrentes legislações estaduais que estão a se disseminar tratando da matéria das loterias. A questão diz para com não apenas a competência supostamente material e simultânea dos entes federados, mas também das diferenças necessárias entre a matéria reservada à legislação de caráter nacional e aquela passível de complementação por seus ulteriores termos pelos demais entes.
A distinção entre legislação e regulação em sentido estrito não é matéria fácil. Até porque, em sendo lato, a legislação não deixa de ser uma forma de regulação. Em matéria de jogos, essa interlocução é não somente adequada como estritamente necessária. As apostas esportivas foram legalizadas em território nacional como modalidade lotérica, isto é, dentro do leque de opções já por todos bem conhecidos como a Mega-Sena, a Lotomonia, a Loteria Federal etc.
No entanto, diferentemente das demais variações de loterias, as apostas esportivas apresentam, desde já, elementos de definição que impactam significativamente o panorama jurídico-regulatório. Nos termos do artigo 29 da Lei nº 13.748/2018, as AQFs, de forma bastante singular se comparadas às jurisdições estrangeiras, seguem o regime jurídico (polêmico, mas mantido e reafirmado pelo STF em recente decisão, inclusive) administrativo típico das loterias, de serviço público. Serviço público por quê? Porque, segundo dizeres do próprio ministro Luís Roberto Barroso, legem habemus. Ou, para aqueles que preferirem, porque sim.
O regime jurídico das loterias como serviço público é datado da década de 30 do século passado e, diferentemente da oscilação típica que sofreram diversos pontos relacionados aos jogos lotéricos, como a possibilidade, ou não, de delegação ao particular; do princípio da convivência entre loterias federais e estaduais, mantem-se como um mantra inafastável. E que a doutrina não consegue verdadeiramente explicar.
Em verdade, a ligação das loterias como serviço público é sui generis porque não advém da natureza jurídica do serviço em si (e da sua respectiva essencialidade per se ou interdependência social, como comumente associado a essa modalidade de serviço. Afinal, como poderiam então demais modalidades de jogos de azar serem caracterizadas, em princípio, como contravenção penal se são tão basilares à sociedade?), mas, sim, em função da sua destinação.
Não é sem razão que, em sede internacional, as loterias são caracterizadas como quasi-public goods. Isso porque são os recursos delas provenientes que adquirem caráter de essencialidade em razão de sua alocação em "boas causas", desde assistência social, esporte, saúde, entre outras áreas.
No nosso caso, de forma também peculiar, estão as apostas esportivas correlacionadas à obtenção de recursos também em prol da segurança pública. De todo o modo, deve-se compartimentar a classificação dentro da complexidade da exploração do serviço público em formação: o que é regrado pelo típico regime de serviço público é a sua correlação com a destinação quanto ao produto da arrecadação pelo ente governamental — e não quanto à sua forma de exploração.
A delegação ao particular deverá ser regrada por procedimento que salvaguarde os princípios basilares de publicidade, legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência, seja por meio de concessões, seja por meio de autorizações. Todavia, na esfera do ente privado, não se está diante de prática sem fins lucrativos. A legislação é explícita nesse sentido: trata-se de exploração comercial (artigo 29, caput, da Lei nº 13.748/2018). E, para tanto, exigências compatíveis com a lucratividade e sustentabilidade da exploração devem ser dimensionadas.
Além disso, o mesmo dispositivo ainda prevê a exclusividade de exploração da União, qualidade esta incompatível com a subsequente e paradigmática decisão proferida pelo STF, no ano de 2020, no julgamento das ADPFs 492 e 493, ADI 4986/MT, que considerou não recepcionados pela nova ordem constitucional dispositivos que restrinjam a exploração econômica das modalidades lotéricas (apostas esportivas de quota fixa aqui incluídas, obviamente) pelos estados. Já se vê que, mesmo em matéria legal, a fonte não advém unicamente da legislação.
A regulação ad hoc e excepcional (ou ordinária) do Judiciário em matéria de jogos é uma constante em nosso território. Por meio do entendimento do STF, foi traçada ainda imperiosa distinção entre competência legislativa e competência administrativa (ou material). Na primeira, estão a inserção e admissão, pelo ordenamento jurídico, de sistemas de sorteio e prognósticos — no caso, lotéricos — passíveis de exploração. Essa lei primária que se convencionou caber apenas à União. Na segunda categoria, como competência administrativa, está a forma de exploração da atividade, isto é, se será, em primeiro plano exercida a competência para tanto pelo ente interessado e como o será (de forma direta, pelo próprio ente ou se de forma indireta, por delegação ao particular, por exemplo, entre outros elementos). Seria como dizer que a competência legislativa dos estados está condicionada à anterior e necessária competência legislativa da União na criação de modalidades lotéricas. Em qualquer das hipóteses, deverá sempre ser respeitada a moldura regulatória já estabelecida pela União para tanto. E são justamente em razão desses contornos que residirão, potencialmente, os maiores desafios a serem enfrentados no campo da regulação da atividade.
Quais seriam, ipso facto, os contornos regulatórios mandatórios no panorama estadual (e, apesar de polêmico, até mesmo municipal, se for o caso) e até onde essa liberdade e autonomia sob o manto do que também convencionou o STF chamar de competência material poderá ser exercida? Como averiguar que a competência material dos estados será considerada no ambiente online? Como evitar uma potencial guerra fiscal entre municípios a partir do ISS incidente sobre a atividade? Aliás, teremos uma discussão sobre a base de cálculo alargada para demais exações tributárias que não os repasses tributários objeto da Lei nº 14.183/2021? As perguntas são inúmeras, assim como o desafio de regular a atividade, seja genérica ou estritamente falando.
A situação adquire considerável complexidade quando se observa que os estados já se antecipam na condução de seus estudos regulatórios e mercadológicos por meio de processo de escolha de propostas de manifestação de interesse (PMI) e de operadores para exploração das atividades. Audiências públicas já foram realizadas e ainda o serão, e uma série de indagações, já reduzidas a termo, ainda pendem de elucidação: não somente porque as respostas não estão postas, mas porque, nesse ambiente, ainda se está a apostar e as regras para tanto se convencionar.
Se aqui se tratasse de competência concorrente dos entes federados, os estados exerceriam competência suplementar até que sobreviesse legislação federal a respeito da matéria, nos termos do artigo 24, §§1º a 4º, da CF, suspendendo-se a eficácia de tudo que com esta a legislação estadual vier conflitar.
Ocorre que aqui, no caso das APQs, não se está diante de suplementação nem de subsidiariedade, mas de complementariedade, respeitados os padrões gerais já estabelecidos (ou ainda vindouros) da legislação federal. Por inúmeras vezes o Supremo já sedimentou que o regime jurídico das loterias se submete à competência privativa da União, nos termos do artigo 22, XX, da CF. Com o recente julgado de 2020, o relator ministro Gilmar Mendes ainda esclareceu não ter havido revogação direta ou indireta da Súmula Vinculante nº 2, já que apenas modalidades não autorizadas pela União não poderiam ser legisladas, reguladas e exploradas pelos entes federados.
No presente, entre a complexidade padrão inerente a uma legislação e regulação multinível em caráter abstrato e a realidade assimétrica dos atuais ambientes construídos a partir das bases territoriais em formação, está posto o dilema. Dilema, que do latim dilemma tem, no campo da lógica, caracterização como sendo o "conjunto de duas sentenças contraditórias" e invoca "situação em que se deve tomar uma de duas decisões difíceis". Nem oito nem 80. Não se está diante de competências mutuamente excludentes entre União e entes federados. O desafio é, pois, tornar o dilema em missão — e transformar potencial contradição em harmonização. Nesse intuito, e a fim de tornar a missão cumprida, e não somente dada, que reguladores, legisladores e interessados saibam consolidar pontos nevrálgicos para que sejam tanto:
1) discutidos abertamente em momentos oportunos, como audiências públicas e comissões de estudos representativas de classe;
2) formalmente incorporados nos instrumentos regulatórios — e em formação — com racionalidade e sistematicidade. Somente assim teremos a real substanciação da moldura regulatória a que entes federados devem atentar para que com ela possam, de forma harmônica e construtiva, conversar.
Maria Luiza Kurban Jobim
Advogada e mestre (LLM) em Direito Comercial Internacional pela Universidade de Kent (Reino Unido), ex-pesquisadora do "The Bingo Project" e advogada associada da área de Gaming e Tecnologia do FYMSA Advogados Associados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico