Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal permitiu aos estados iniciarem ou ampliarem seus territórios a exploração de serviços lotéricos, abrindo oportunidades para alavancarem novas receitas. Essa oportunidade só será bem aproveitada se seguir as melhores boas práticas internacionais.
Segundo a lei, o montante arrecadado por uma loteria é dividido em três partes: premiação (P); tributos (T); e remuneração da empresa operadora (O) – de tal forma que R = P + T + O. O governo se beneficia dos bons resultados, pois sua parte “T” cresce quando “R” cresce. Assim, lhe interessa a boa performance dos produtos lotéricos.
A arrecadação de loterias no Brasil gira em torno de 0,2% do PIB, em média, enquanto em países similares chega a 1%. Há grande potencial de aumento de receitas. O estado de São Paulo pode arrecadar anualmente até R$ 2,5 bilhões adicionais.
Porém, nem São Paulo nem os demais estados que já iniciaram processos de implementação ou atualização do marco legal, como Maranhão Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal estão seguindo as melhores práticas internacionais.
Na Europa, nos EUA e no governo federal (lei 13.756/2018), a distribuição do arrecadado ® é definida em lei. No mínimo, deveriam definir a participação percentual do governo. Essa prática é essencial para a segurança jurídica do operador (ao planejar os investimentos), importante para o apostador conhecer previamente o retorno esperado e, sobretudo, fundamental ao governo para dar previsibilidade à receita que financiará suas políticas públicas. Ocorre que os estados estão propondo suas leis de forma que caberá aos governos definirem, a posteriori, a participação (%) de cada parte.
A título de exemplo, a lei 13.386/2021 de São Paulo, no que se refere a loterias, é lacônica: “Fica o Poder Executivo autorizado a instituir e explorar, [...] a Loteria Estadual de São Paulo, devendo utilizar o resultado líquido obtido no custeio de ações voltadas à assistência social e à redução da vulnerabilidade social no Estado”. Esses “cheques em branco” ao Executivo estadual podem ser inconstituicionais pelo fato de o percentual “T” ser considerado alíquota de tributo (ainda que voluntário). Mesmo a decisão do STF é clara ao garantir aos estados explorar loterias, deque que “observada a competência privativa da União para legislar sobre o tema”.
Para essas leis estaduais serem viáveis, teriam que, via regulamento infralegal, manter exatamente os percentuais da lei federal. Porém, fosse esse o caminho, bastaria replicar tais percentuais na legislação estadual, mas não é isso que tem ocorrido nos estados que já apresentaram seus modelos.
A ausência de parâmetros legais e a discricionariedade dos Executivos estaduais para definir os percentuais de participação de cada parte por decreto ou portaria, além de prejudicar a previsibilidade, transparência e segurança jurídica, abre espaço para uma concorrência "regulatória" e não "de mercado", como já vimos antes na conhecida guerra fiscal do federalismo brasileiro. Por fim, pode ser contestada pela União, como legislador e como concorrente na exploração lotérica.
Contudo, essa postergação na definição dos percentuais pode ter origem na inércia ou lentidão federal. Não temos hoje critérios claros sobre a exploração pelos estados, pois todo arcabouço foi construído com o modelo federal exclusivo. Cabe à União editar a lei das loterias estaduais para definir as regras e parâmetros, inclusive dos percentuais citados. Essa questão é urgente sob o risco dos Estados se anteciparem com decisões equivocadas ou sem efeito prático, além de criar mais imbróglios jurídicos ao federalismo.
É importante também que os Tribunais de Contas e os Ministérios Públicos estaduais se atentem aos processos de implantação das loterias em fase de estudos, a fim de o interesse público prevalecer e o mercado ter condição de se expandir em direção ao seu potencial, gerando empregos, renda e arrecadação.
Em vez de seguir os mercados maduros de loterias, ou exigir uma legislação nacional com as "regras do jogo", os governos estaduais se precipitam e estão prestes a criar mais uma jabuticaba. O STF abriu novas oportunidades de receita, e os Estados estão brincando com a sorte.
Gustavo Guimarães
Doutor em economia e professor no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa); ex-secretário de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap) e ex-secretário especial adjunto de Fazenda, ambos no Ministério da Economia (2020-2022)
Fonte: Tendências/Debates - Folha