MIÉ 27 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 20:31hs.
Marcelo Knopfelmacher, advogado, no Estadão

Os jogos precisam ser legalizados no Brasil

O advogado criminalista Marcelo Knopfelmacher defende de maneira eloquente a legalização dos jogos no Brasil e afirma que “estamos perdendo tempo, arrecadação e geração de empregos – diretos e indiretos'. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, ele destaca, entre outras coisas, que a Constituição de 1988 traz uma série de dispositivos que dão guarida à liberação da exploração dos jogos pela iniciativa privada, como a livre iniciativa e livre concorrência.

A legalização dos jogos no Brasil precisa acontecer, de modo irrestrito e com rapidez.  Trata-se de uma “não questão” sob o nosso ponto de vista, considerando a subjetividade do debate envolto em argumentos retóricos, aleatórios, morais, religiosos, sentimentais e que nada dizem respeito à análise jurídica.

Os argumentos contrários à liberação do jogo como uma atividade econômica lícita remontam ao ano de 1946, quando o Decreto-lei de nº 9.215, baixado pelo então Presidente Eurico Gaspar Dutra, passou a proibir a prática ou a exploração de jogos de azar em todo território nacional, sob a justificativa de que o jogo é degradante para o ser humano.

Tamanha “degradação para o ser humano” decorrente dos jogos de azar, especula-se, teve origem na influência da então Primeira-Dama, Dona Carmela Teles Leite Dutra, sobre seu marido, motivada por sua forte devoção à Igreja Católica.

Desde 1946, portanto, o debate acerca do tema não tem sido racional, ora encontrando óbices em convicções religiosas, morais, éticas e de qualquer sorte – menos jurídica.

Nosso recorte sobre o assunto é jurídico e mais especificamente jurídico-constitucional e jurídico-penal.

Dos “considerandos” do Decreto-lei 9.215/1946 constavam os seguintes: (a) a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; (b) a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim; (c) a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e exploração de jogos de azar; e (d) as exceções abertas à lei geral decorrem de abusos nocivos à moral e aos bons costumes.

De 1946 para cá, contudo, muitas mudanças legislativas ocorreram, em especial a promulgação das Constituições de 1967 e de 1988.  No Brasil do século 21 e sob a égide da Constituição de 1988, a realidade de 1946 é bastante diferente.

Dos 193 países que integram a ONU, apenas 37 proíbem a instalação de cassinos.  Desses 37 destacam-se Irã, Iraque, Afeganistão, Indonésia e Arábia Saudita – todos esses por motivos religiosos.  Brasil, Cuba e Islândia também integram essa minoria.

Já em relação aos 34 países que formam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o chamado “clube dos ricos” do qual, aliás, o Brasil quer fazer parte, apenas a Islândia proíbe jogos em seu território.  Já no G-20, apenas Brasil, Arábia Saudita e Indonésia proíbem os jogos.

Estamos, portanto, perdendo tempo, arrecadação e geração de empregos – diretos e indiretos.

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, em recente artigo (de 25/2/2022) no O Globo, observa que países que convivem com a exploração de jogos implementam recomendações, protocolos e procedimentos que visam prevenir a prática de lavagem de dinheiro que possa estar associada a tais atividades.  Criação e manutenção de cadastros de clientes, acompanhamento das atividades dos jogadores, restrições a operações fora do sistema bancário, além de comunicação ao COAF diante de operações suspeitas.

Por outro lado, nem todos os jogos são jogos de azar propriamente ditos e sobre os quais poderia incidir um impedimento legal para sua exploração como os que têm vigência até os dias de hoje (tanto por força do Decreto-lei nº 9.215/1946, como por força do artigo 50 do Decreto-lei nº 3.688/1941, “Lei de Contravenções Penais”).

MIGUEL REALE JUNIOR, em Parecer específico sobre o tema apresentado a pedido da Confederação Brasileira de Texas Hold’em, assim se pronunciou sobre a natureza do pôquer como um jogo de habilidade; e não como um jogo de azar:

(…) Ora, como analisei anteriormente, o pôquer constitui um jogo de complexidade e de sofisticação de conhecimento similar ou superior ao Xadrez ou ao Gamão, dependendo ainda mais que o Pif – Paf ou a Caixeta da habilidade, que consiste em informação sobre probabilidades matemáticas, conhecimento das regras e estratégias do jogo, capacidade psicológica de apreender as reações dos adversários, possibilidade de dissimular as próprias cartas e de prever as cartas dos demais.

Assim, o pôquer não pode ser reconhecido como jogo de azar, para cuja caracterização é essencial que predomine o aleatório, a ponto de a habilidade não ter peso sequer pouco inferior, mas muito inferior ao fator sorte. Pelo contrário, como antes analisado, o sucesso no jogo de pôquer, pela própria natureza do jogo, depende em grande parte da habilidade do jogador, razão pela qual o jogo de pôquer não pode ser tido como jogo de azar, não se perfazendo a tipicidade do estatuído no art. 50 da Lei de Contravenções Penais no caso de exploração do jogo de pôquer. (…)” (destaquei)

Por sua vez, a Constituição de 1988 traz uma série de dispositivos que dão guarida à liberação da exploração dos jogos pela iniciativa privada:  artigo 170, inciso IV (livre iniciativa e livre concorrência); artigo 173 (vedação de exercício de atividade econômica pelo Estado, salvo os casos previstos pela própria Constituição e salvo situações de segurança nacional e interesse coletivo); artigo 177 (que lista as hipóteses de monopólio de atividade econômica pelo Estado, sem incluir o jogo e a aposta).

Por fim, o artigo 195, III, da Constituição Federal prevê a taxação sobre “receita de concursos de prognósticos”, vale dizer, a loteria federal mediante sorteio de números, loterias e apostas.

A própria Constituição traz, portanto, a autorização para a exploração de jogos de azar ao prever a tributação sobre a receita de concursos de prognósticos.

Por qual razão, então, tais concursos com sorteios de números, loterias e apostas não poderiam ser explorados pela iniciativa privada, como aliás apontado pelas diretrizes de nossa Constituição no sentido da livre iniciativa e livre concorrência?

As preocupações com a prevenção à lavagem de dinheiro, como já mencionado, são importantes e necessárias.

Mas, para tanto, uma minuciosa regulação, controles internos e externos, mecanismos de compliance a serem periodicamente revistos, canais de denúncia, exigência de que todas as transações ocorram dentro do sistema bancário e comunicação ao COAF diante de suspeitas são medidas que funcionam bem e que se aplicam à prevenção da lavagem em outros setores sensíveis como inclusive o próprio sistema financeiro nacional.

Fazemos votos de que a legalização dos jogos e dos cassinos no Brasil seja breve.

Marcelo Knopfelmacher
Advogado criminalista

Fonte: O Estado de S. Paulo