Os lobbies dos bingos, cassinos e do jogo do bicho não são a melhor companhia para estar, mas devemos tentar manter alguma coerência. Não vejo como se possa usar o argumento da autonomia individual para defender o direito de usar drogas, abortar ou submeter-se a eutanásia, mas não estendê-lo aos que desejam torrar em caça-níqueis ou na roleta o dinheiro que ganharam honestamente. O que discutimos, no fundo, é menos o conteúdo de cada um desses direitos e mais os limites do poder do Estado para regular a vida das pessoas.
Cuidado, não estou defendendo uma versão bolsonarista da liberdade como o direito de fazer tudo o que a natureza nos faculta. Sempre que as consequências de uma ação podem causar dano concreto a terceiros, o poder público tem legitimidade para agir. Mas, quando os efeitos deletérios atingem primordialmente a pessoa que fez a escolha, aí deve-se preservar a liberdade, incluindo a de errar. Um exemplo didático é o da combinação de drogas (em especial o álcool) com a direção de um veículo. Se o cara quiser se entupir de cachaça ou cocaína, é direito dele. Mas, se o fizer, não pode dirigir seu carro, já que colocaria pedestres e outros motoristas e passageiros sob risco.
É claro que, no mundo real, as pessoas são muito menos autônomas do que desejaríamos (o próprio livre-arbítrio pode não passar de uma ilusão) e não existe ação que, em algum grau, mesmo que pequeno, não afete toda a comunidade. Ainda assim, penso que precisamos de instituições e regras que preservem a ideia de que cada um é responsável por suas escolhas, ou inauguraríamos o regime da irresponsabilidade garantida. Eu diria que essa é uma daquelas ficções necessárias.
No frigir dos ovos, acho que é apenas um moralismo meio besta que nos faz reprovar que o sujeito gaste todo seu dinheiro no jogo, mas não objetamos quando ele chega ao mesmo resultado no mercado de derivativos.
Fonte: Folha de S.Paulo