Muitas vezes o desconhecido é rotulado como “mal”. Opta-se por impor rechaço social, ocasionando a sua marginalização. O desenvolvimento deste processo pode ser identificado em inúmeros rincões da vida em sociedade. Por vezes, o Direito serve de reforço ao repúdio social, rotulando como crime (infração penal) ou ato ilícito (civil) o comportamento tido como desviante.
Atualmente, cresce um debate constante no mundo dos esportes sobre a regulamentação das apostas esportivas, ao tempo em que dúvidas pululam em relação à sua aceitação com a igual revelação do alcance da manipulação de resultados. Malgrado se trate de temas distintos, se opera uma espécie de perniciosa simbiose, como se um não existisse sem o outro.
Impossível não se reconhecer que a manipulação de resultados findará por manter pontos de intersecção com as apostas esportivas; contudo, não poderá ser entendida como um desdobramento ou uma consequência necessária da adoção desta oportunidade de negócios no esporte.
Há, com efeito, uma zona gris neste debate, sobretudo nos dias de hoje, quando a discussão a ser encetada é influenciada por uma forte pitada de conservadorismo irracional, uma cegueira deliberada para verdadeira demonização da prática das apostas esportivas como algo lícito.
O ato de apostar é próprio da vida em grupamentos humanos, é uma competição, que poderá se pautar em produção de resultados determinados com ou sem o controle dos apostadores. Explico: duas pessoas podem apostar algo numa corrida entre ambos; assim como, essas mesmas apostariam o mesmo prêmio se no final de semana chovesse ou não. Impossível, pois, conter isso da vida em sociedade.
As apostas esportivas têm crescido exponencialmente, inclusive surpreendeu durante a pandemia, em 2020 – neste ano foi avaliado no mercado global em US$ 59,6 bilhões. O seu alcance é bem amplo, podem ser vistas como diversão, como forma de aumento de renda e até como meio de socialização com amigos. No país, projeta-se existir mercado bilionário, apesar das mazelas na sua regulamentação.
Malgrado a Lei nº 13.756/2018 trazer para o ordenamento jurídico nacional a licitude das apostas esportivas, restava a sua regulamentação, para que se pudesse falar, verdadeiramente, em mercado tutelado juridicamente, estabelecendo-se direitos e deveres, criando obrigações e, sobretudo, gerando receita para o erário.
Havia previsão de que em dois anos se produzisse decreto, que nascesse fruto de debates entre os stakeholders e o Estado Brasileiro. De fato, alguns debates ocorreram, aqui e acolá; contudo, sempre esbarrando num discurso (vazio) de que as apostas poderiam implicar na praga da ludopatia, principalmente, do temor de manipulação de resultados, medo de não conter tal burla. Desta forma, os primeiros dois anos foram estendidos para outros dois mais.
Aporta-se ao fim de mais biênio sem que o Governo Federal tenha tido a coragem de aplicar a lei e dar um importante passo rumo ao controle e legalização do mercado de apostas. Apesar de que diversas casas de apostas já estampam suas marcas nos principais clubes do país (na Série A do campeonato brasileiro de futebol se verifica isso em 14 dos 20 participantes), nada se produziu de concreto.
Mesmo ante esse cenário de paralisia, o investimento em apostas esportivas não parou de crescer e passou a reunir no mercado empresas sérias com outras de origem e condutas duvidosas. Nesse ambiente, os apostadores ficam perdidos, pois não encontram no Estado onde se amparar, caso necessário. Afinal, inexiste um arcabouço jurídico para tutelar tais relações.
D´outro giro, com a desregulação aqueles que primam por trilhar as sendas da criminalidade encontram campo fértil na manipulação de resultados e na evasão fiscal, por exemplo. Muito embora o Estatuto do Torcedor preveja a primeira ação como um delito, não há estrutura no âmbito dos órgãos estatais de persecução penal para que compreendam o fenômeno e consigam bem desempenhar o seu papel esperado.
Além disso, na estrutura do sistema desportivo não há diálogo, construção de pontes entre federações, clubes, árbitros e atletas, para prevenir e reprimir, efetivamente, a manipulação de resultados.
A desconexão entre os stakeholders é combustível para que, silenciosamente, a manipulação se espalhe e contamine, especialmente, os jogos invisíveis; ganhando, a cada dia, mais força e adeptos. Não tardará que se alcancem as grandes partidas dos maiores campeonatos nacionais e, com isso, padeçamos de desconfiança nos resultados, repercutindo assim nos investimentos no esporte.
Assim sendo, é preciso agir e compreender que todos fazem parte de um mesmo ecossistema. A sustentabilidade dele dependerá da harmonização e preservação.
E como se daria isso?
Do ponto de vista das ações governamentais, é preciso enfrentar e avançar no tema, promovendo a regulamentação das apostas esportivas. Trazer édito legal que seja claro e bem definido. Em especial, criar regras de compliance para o setor, a exemplo de criação de canal de denúncias, exigência da criação de código de ética e estruturação empresarial que contemple departamento próprio – não se pode ter como satisfatório a mera existência de ouvidorias ou ferramentas de boa governança e gestão apenas, é preciso ir além de se submeter a uma cultura de maior controle da atividade.
Importante também qualificar e desenvolver nos órgãos de persecução grupamentos que conheçam o mercado, para que as melhores respostas repressivas sejam ofertadas, quando necessário, tanto na seara criminal, quanto na civil.
O Estado deve entender o mercado e seus players não como adversários ou súditos, todavia, vê-los na perspectiva horizontal, porque isso fará diferença na consolidação do ambiente de negócios, evitando-se a evasão fiscal ou o escamotear de práticas irregulares ou, ainda, estimular – indiretamente – a manutenção deles às ocultas, fora do país e/ou em mercados ilegais.
Mas, não bastará somente isso.
O sistema desportivo de alto rendimento que é alcançado pelas apostas esportivas deverá estar atento a essa realidade e agir. O investimento em departamentos de compliance/integridade urge, para que se dialogue com os respectivos setores das entidades de administração do esporte (confederações/federações) e órgãos estatais de controle da atividade.
Clubes, árbitros, atletas e federações são peça-chave para combater a manipulação de resultados. E, com isso, não somente garantir o jogo limpo, mas, também, transmitir a segurança para o torcedor, a sociedade e, também, para o mercado das apostas esportivas.
O atual estágio vivido não transmite ao consumidor final (apostador) que a atividade é 100% segura e isso precisa mudar, para que esse mercado, que sem qualquer administração/regulação, produz fartos dividendos, possa, organizadamente, impulsionar novos negócios, girar cada vez mais valores.
Além disso, o cultivo da imagem desviante da casa de aposta ou associá-la à manipulação de resultados é uma incoerência e irracionalidade.
Quem mais perde com a ausência de tratamento jurídico adequando é a casa de aposta, que não tem como recorrer, nem meios organizados e institucionalizados de combate à manipulação.
Os mitos sobre casas de aposta e manipulação de jogos sempre vão pairar enquanto imperar a covardia no seu adequado enfrentamento. A vazão que se confere a discursos morais vazios é fustigada por completo à medida que se compreende que a regularização não é sinônimo de liberdade sem deveres. Ao revés, é certeza de que o controle garantirá maior respeito à lei.
De igual sorte, pode-se dizer que a manipulação de jogos padece de justo embate, apesar, hoje, dos esforços isolados que se colhe numa ou noutra entidade de administração do esporte. Falta a criação de uma rede de combate, da utilização das ferramentas adequadas e do diálogo entre mundo do esporte, Estado e mercado que explora o esporte.
A letargia vivenciada não permite que se crie ambiente sadio e seguro para crescimento do mercado de apostas esportivas e garanta maior controle da higidez dos resultados. No entanto, força convir que existe alternativa, sendo esta apenas uma opção política de todos.
Agir ou esperar?
Este é o dilema que deve ser enfrentado. Haja-se já!
Milton Jordão
Advogado, mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal/Bahia e mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida/ESP; diretor-tesoureiro da CAA BA; ex-conselheiro Seccional OAB/BA; membro da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB Nacional; membro das Comissões de Direito Desportivo da OAB/BA e OAB/SE; presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA); membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD); presidente do STJD do Judô e do TJD do Karatê da Bahia; ex-procurador do STJD do Futebol; autor de obras e artigos jurídicos na área do Direito Desportivo. Escreve no Lei em Campo na coluna “Direito no lance”.
Fonte: Lei em Campo