MAR 26 DE NOVIEMBRE DE 2024 - 19:23hs.
Nairo Bustamante Panfdolfi, especialista na área Criminal

Criminalização dos Jogos de azar no Brasil: A atuação contraditória do Estado

Nairo Bustamante Panfdolfi, graduado na Faculdade de Ensino Superior de Linhares - FACELI, e atualmente Pós-Graduando em Ciências Criminais, apresenta no site Jusbrasil uma pesquisa que objetivou identificar as razões para proibição dos jogos de azar em uma sociedade que tem predileção por jogos. Para ele, “a legalização é o meio mais eficaz para o combate às Organizações Criminosas, sendo uma questão de segurança pública, que é dever do Estado”.

O ato de competir está na essência do ser humano, sendo constatado por historiadores que aproximadamente 3.000 a.C a sociedade já estava inserida neste meio, alguns como for de diversão, outros utilizando-a como meio de auferir vantagens.

No Brasil não foi diferente, sendo introduzida a prática inicialmente com o conhecido "jogo do bicho", na cidade do Rio de Janeiro-RJ, quando o proprietário do Jardim Zoológico, João Batista Vieira - o barão de Drummond - criou a citada modalidade para arrecadar fundos e salvar o empreendimento da falência.

Mas, o que seria de fato os jogos de azar?

Esse tipo de atividade, muito comum nos primórdios da civilização, é aquele que a qualidade pessoal do indivíduo não pode influir diretamente no resultado, isto é, depende da álea - sorte -, assim, o seu desempenho não influenciará o resultado final.

Deste modo, por questões de Política Criminal, atualmente a atividade é proibida no Brasil pelo Decreto-lei nº 3.688/1941, Lei de Contravencoes Penais - LCP, em seu artigo 50.
 

Art. 50 Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena. Prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local.
§ 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos.
§ 2º Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador.
§ 3º Consideram-se, jogos de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. [...]


Em que pese a legislação criminalize a prática, é notório que as pessoas nunca pararam de apostar, sendo uma prática socialmente aceita e que o próprio Estado se coloca em contradição ao implementar as conhecidas "Loterias da Caixa", com os prêmios milionários da mega-sena feitos semanalmente.

Ora, qual o sentido e interesse do Estado em criminalizar uma conduta/escolha que deve partir exclusivamente do indivíduo?

Ao atribuir o monopólio da regulamentação e implementação, o Estado também tem o controle da arrecadação, assim, caso a atividade fosse expandida, o controle pelos órgãos de fiscalização seria dificultado.

O fato é que, a legislação penal não deve se preocupar com condutas desse gênero, principalmente quando é socialmente aceitável por todos e, aqueles que não se simpatizam com a prática, simplesmente não seguem esse meio.


DO DIREITO PENAL E DA TIPIFICAÇÃO DE BENS JURÍDICOS SOCIALMENTE INTERESSANTES

É pacífico que para constituir um tipo penal, o bem jurídico a ser tutelado tem que sofrer uma lesão ou ameaça relevante, de forma que a tutela se faz necessária, assim, considerando ser o direito penal o meio mais lesivo para o indivíduo, deve ser encarado como a última escolha, ultima ratio, quando não houver meios disponíveis para sanar o problema.

Nesse sentido, Eugénio Raúl Zaffaroni dispõe que alguns bens estão sob nossa guarda e podemos dispor deles, é uma faculdade do indivíduo. Circunstâncias alheias que ultrapassem essa faculdade e se tornam excessivamente onerosas, de forma que afetem o bem jurídico de forma significativa, poderão ter a tutela penal.

Assim, não são todas as violações que merecem a tutela penal. Nesse sentido Luiz Régis Prado expõe quais bens jurídicos devem receber essa tutela.
 

A partir do exposto, resta precisar o conceito de bem jurídico-penal, como sendo um ente (dado ou valor social) material ou imaterial extraído do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, considerado essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem (PRADO, 2018).


Vislumbra-se que a tutela penal não deve ser utilizada a qualquer custo, existindo meios eficientes que podem sanar a problemática nos novos casos que possam vir a surgir com a evolução da sociedade.
 

DA ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA DA PROIBIÇÃO

O alemão Hans Welzel, considerado por muitos como "pai do finalismo", fez grandes estudos analisando a conduta criminosa com a realidade social, denominando-se posteriormente como Teoria da Adequação Social.

Tal teoria abraça a ideia de que os atos socialmente aceitos não merecem a tutela estatal limitadora, assim, não há motivo para leis proibitivas que ditem o que deve ou não ser feito, considerando que existe um padrão de normalidade na prática do ato.
 

A adequação social constitui, de certo modo, um apoio para os tipos penais, é o estado normal de liberdade de ação que lhes serve de base e é tacitamente suposto. Por isso, também ficam excluídas dos tipos penais as ações socialmente adequadas ainda que estejam naqueles casos que possam ser subsumidas nos mesmos, por exemplo, de acordo com critérios causais (WELZEL, 1997).


Importante esclarecer que, as condutas ditas socialmente adequadas não são necessariamente exemplares, é preciso diferenciar, contudo, elas se mantem dentro de um patrão de liberdade social, no qual não cabe a introdução do Estado.

Assim, é evidente que a moral, analisada individualmente, não pode influenciar o direito penal e tampouco ser utilizada para criminalização de condutas.

Outro princípio que merece destaque é o da Exclusiva Proteção de Bens jurídicos, no qual o direito penal abraça a ideia que para uma conduta ser considerada criminosa, se faz necessária a ameaça ou lesão ao bem jurídico determinado.

A subversão desse princípio pode desvirtuar a real intenção do direito penal e causar efeitos contrários, surgindo novos delitos. Assim entende Cesare Beccaria, quando dispõe sobre a criminalização de condutas desnecessárias.
 

Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes, não tendo tais atos nada de nocivo, não se previnem os crimes: ao contrário, faz-se que surjam novos, porque se mudam arbitrariamente as ideias ordinárias de vício e virtude, que, todavia, se proclamam eternas e imutáveis (BECCARIA, 2017).


Em consonância, tal ideia mostra intima relação com a máxima em latim nulla lex poenalis sine necessitate, isto é, não há lei penal sem necessidade. A brilhante exposição do autor faz referência a todo debate que permeia nessa pesquisa, no qual as proibições não podem acontecem simplesmente por afronto aos bons costumes, a valores éticos e morais.

Ora, os valores e os costumes mudam de acordo com a localidade, principalmente em um país vasto territorialmente e com influência de vários povos dentro do mesmo território. Desta forma, utilizar posições pessoais e atender aos anseios de parcelas da sociedade não faz jus ao objeto de proteção do Direito Penal pátrio.

Por fim, talvez sendo o principal dos princípios, vem a Intervenção Mínima Estatal, este que somente deve intervir quando realmente for necessário, quando os outros ramos do direito não forem suficientes e não solucionarem o problema. Assim entende Guilherme de Souza Nucci, dizendo que as condutas de fato lesivas, merecem a tutela penal.
 

A liberdade individual, estampada sob variadas formas (ir, vir e ficar; pensar e manifestar-se; crer e cultuar; associar-se; viver de maneira privada; zelar pela intimidade; possuir e usufruir de bens; unir-se em família etc.), é o paradigma da sociedade democrática, regrada por leis. Destarte, as infrações às normas postas merecem ser coibidas por inúmeros instrumentos jurídicos extrapenais, antes que se possa lançar mão da ultima ratio (última hipótese), identificada no direito penal (NUCCI, 2012).


É inegável que os jogos de azar estão enraizados em nosso país, existindo diversas casas de jogos, bancas de apostas nas ruas que podem ser vistas por qualquer pessoa, além de outros jogos clandestinos como de máquinas caça-níquel. A tradição brasileira aceita os jogos e, desde sua criação, não cessou a sua prática, mesmo quando o poder estatal criminalizou a conduta, assim, é natural que os jogos sempre estiveram presentes em nosso meio, sendo um costume.

O pesquisador Juliano Augusto Rodrigues (2015) esclarece que: “os jogos de azar, como se sabe, são práticas centenárias que resistem à repressão estatal graças à simpatia da sociedade”, citando o sociólogo francês Loïc Wacquant (2008):
 

A prática dos jogos de azar é socialmente aceita e está arraigada nos costumes da sociedade. O jogo do bicho existe há mais de um século (desde 1892), tendo se tornado contravenção em 1941. Ele faz parte da cultura, já se tornou um folclore na nossa sociedade. A lei penal não tem o poder de revogar a lei econômica da oferta e da procura. Se a demanda não for suprida pelo mercado lícito, será suprida pelo mercado ilícito (apud RODRIGUES, 2015).


Os esclarecimentos são fundamentais para desmistificar os argumentos favoráveis à criminalização, porque sendo considerado costume, não pode ser classificado como contravenção penal, principalmente quando o bem jurídico é abstrato, como no caso dos “bons costumes”. Ato contínuo, por clara lógica, a conduta sendo considerada costumeira não tem base para ser socialmente reprovável, pois é adequada aos anseios populares e não merecendo a tutela penal criminalizadora.
 

O MONOPÓLIO ESTATAL NA EXPLORAÇÃO DOS JOGOS DE AZAR

Acompanhado do entendimento de que os jogos de azar estão intrinsecamente relacionados à história brasileira e aos costumes do país, grande parcela da continuidade deve ser atribuída ao Estado, pois este detém o monopólio na exploração dos jogos, com inúmeras casas lotéricas em funcionamento.

As apostas são feitas na Caixa Econômica Federal, que realiza diversos sorteios semanalmente, todos dependentes tão somente da sorte do jogador para o êxito, ou seja, não requer qualquer habilidade para influenciar o resultado final. Ressalta-se que essa conduta é justamente o que a LCP visou reprimir em seu artigo 50, § 3º, contudo, se mostra totalmente ineficaz quando o entre proibitivo explora a atividade.

Além disso, a legislação se mostra insuficiente no que diz respeito às apostas esportivas em sites online, no qual empresas com provedores em outros países, mas com sedes físicas no Brasil, exploram a atividade de apostas principalmente em jogos de futebol. Não existindo legislação que regulamente a atividade pelos meios digitais, ocorre mais uma desmoralização do instituto penalizador no país.

No entendimento de que a penalização exacerbada desmoraliza o Direito Penal e ofende o princípio da intervenção mínima, Cezar Roberto Bitencourt entende que:
 

Os legisladores contemporâneos, nas mais diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da “inflação legislativa” reinante nos ordenamentos positivos (BITENCOURT, 2020).


A proibição se mostra mais contraditória ainda quando o monopólio estatal na exploração se estende às apostas esportivas de corrida de cavalos, que em seu artigo 50, § 3º, b, a LCP veda expressamente as apostas fora dos hipódromos. É evidente a intenção estatal com essa limitação, atribuindo somente a ele o poder de receber os lucros e ao mesmo tempo fiscalizar.

Existe uma contradição evidente por parte do Estado, dando mais ênfase e razão ao argumento baseado nos princípios expostos e principalmente na adequação social de Hans Welzel, no qual a atividade de jogos de azar é tão aceita socialmente que o próprio Estado exerce sua exploração.

O argumento proibitivo com base nos “bons costumes”, além de ultrapassado, evidencia a real intenção do Estado, servindo como base para ter o monopólio na exploração e, como consequência, sendo o único a adquirir lucros.

É notório que o conservadorismo excessivo da legislação traz frutos ruins ao país, que vai contra a tendência mundial da legalização dos jogos, atuando tipicamente como os governos de nações subdesenvolvidas, segundo dados do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL):
 

Vale destacar que entre os 34 países que formam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento ou Econômico -OCDE, chamados de grupo dos países ricos ou desenvolvidos, apenas a Islândia não permite jogos em seu território. Já na perspectiva do G20 – grupo de países que o Brasil pertence -, 93% das nações têm os jogos legalizados em seus territórios, sendo que apenas 6,97% ou três países não permitem: Brasil, Arábia Saudita e Indonésia. Vale lembrar que os dois últimos são islâmicos (IJL, 2021a).


Deste modo, a legislação brasileira de mostra ultrapassada, atrasada, com relação aos demais países, desprezando o princípio da ultima ratio e contrariando a tendência mundial.
 

CONSEQUÊNCIAS DA LEGALIZAÇÃO

Adentrando em um contexto de possível legalização, é notório que algumas medidas serão necessárias para que o poder estatal tenha controle sobre as diversas casas de apostas que surgiriam. Nessa toada, um ponto importante diz respeito a como seria feita a fiscalização dos jogos, visando evitar as fraudes e continuidade de ações ilícitas. Diversos países possuem mecanismos para evitar essas manipulações, dentre eles o Uruguai e EUA e, em que pese seja difícil até mesmo no contexto atual não existir falhas no sistema, ainda é mais vantajoso para o Estado.

A razão pela legalização se mostra não só como liberdade do indivíduo de decidir sobre o que deve fazer, mas também de segurança pública, pois os operadores ilegais fazem parte de uma rede criminosa, não pagando impostos e tampouco contribuindo com a sociedade.

O diretor de jogos do Peru, Manuel San Román Benavente discorre sobre o tema e a política que deveria ser adotada, dizendo que não é possível controlar os jogos, assim, não deve ele ser proibido e nem estimulado, mas sim tolerado (IJL, 2021a). Observa-se um movimento contrário do Estado brasileiro, quando proíbe a atividade, desde que esta não seja a incentivada por ele.

As consequências da proibição são alarmantes, no qual a atividade dos jogos de forma ilegal arrecada mais que a legal. As estatísticas se mostram desfavoráveis com o movimento proibitivo:
 

O jogo ilegal no Brasil movimenta mais de R$ 27 bilhões ao ano. Os oficiais, operados pelas Loterias Caixa, arrecadam R$ 17,1 bilhões. A empresa de pesquisa de mercado Global Industry Analysts, Inc. (GIA) estimou que o mercado mundial de jogos em 2020 foi de US$ 711,4 bilhões, e a projeção para 2026 é de US$ 876 bilhões (IJL, 2021b).


Além disso, como consequência lógica, a arrecadação seria maior, existiria a tributação sobre aquela atividade e seriam gerados diversos empregos diretos, seja nas redes hoteleiras, transportes, bem como para exercer atividade nas casas de jogos:
 

O mercado de jogos do Brasil, com a legalização de todas as modalidades, tem potencial de arrecadar R$ 74 bilhões brutos (1% do PIB de 2020, de R$ 7,4 trilhões), gerando cerca de R$ 22 bilhões em receitas tributárias por ano. Isso sem contar as outorgas, estimadas em mais de R$ 7 bilhões, os investimentos e o impacto econômico da cadeia produtiva. A legalização poderá gerar mais de 200 mil empregos diretos e formalizar outros 450 mil no jogo não regulado (IJL, 2021b).


A tributação poderia ser utilizada em diversas searas, como já é feita com a arrecadação das loterias da Caixa Econômica Federal, no qual ampara áreas sociais do país. Levando em consideração o momento de caos mundial em razão da pandemia da Covid-19, que contribuiu negativamente para gastos excessivos e destruiu a economia já fragilizada, essa seria uma alternativa fundamental para iniciar o movimento de recuperação.

Ademais, outro ponto criticado é com relação aos jogadores patológicos, isto é, aqueles com transtornos mentais que não conseguem controlar sua impulsividade de jogar. Essas pessoas nunca deixaram de jogar, mesmo na ilegalidade, sendo uma alternativa fundamental a legalização e, assim, existindo fundos para prevenção e tratamento dessa doença.

Desta forma, a legalização é o meio mais eficaz para o combate às Organizações Criminosas, sendo uma questão de segurança pública, que é dever do Estado e, além disso, possibilitará a arrecadação para os cofres estatais em um cenário conturbado para economia do país, podendo ser utilizada nas áreas mais vulneráveis da sociedade brasileira.
 

CONCLUSÃO

A pesquisa objetivou identificar as razões para proibição dos jogos de azar em uma sociedade que tem predileção por jogos. A partir da análise histórica e principiológica, foi possível concluir que a proibição é, por si só, contraditória, tendo em vista que o monopólio estatal da exploração dos jogos faz pelo menos questionar a razão moral e religiosa que fundamenta a sua proibição há 80 anos no Brasil.

Restou claro após a pesquisa que a questão punitiva atende a critérios setoriais, como aos religiosos e ao próprio Estado, que detém o monopólio da sua exploração, não respeitando a adequação social e vários princípios constitucionais penais, tendo em vista que os jogos de azar possuem potencial financeiro suficiente para aumentar a arrecadação aos cofres públicos e atender aos costumes da sociedade brasileira, que efetivamente não deixa de apostar.

 

Nairo Bustamante Panfdolfi
Graduado na Faculdade de Ensino Superior de Linhares - FACELI, atualmente Pós-Graduando em Ciências Criminais, autor de artigos científicos publicados em livros e revistas jurídicas. Atuação preferencialmente na área Criminal, Trânsito e Consumerista.