Conforme amplamente divulgado na última semana, o ministro da Fazenda apresentou o projeto para o novo Arcabouço Fiscal, com foco especial na reparação social no Brasil. Para tanto, a política fiscal promete, entre outras medidas, realizar revisão de gastos tributários e de tributação de setores hoje não tributados, como o de apostas eletrônicas.
Historicamente, a tributação de apostas é objeto de discussões no Brasil desde a década de 50, quando foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 25.531-São Paulo. O processo tinha por objeto execução fiscal movida pela Prefeitura Municipal de Santos contra o Jockey Club de São Vicente, para a cobrança do então imposto de indústrias e profissões, sobre apostas sobre corridas de cavalos ocorridas fora dos locais de corrida permitidos pela legislação.
O entendimento do STF foi o de que: "Não pode o contribuinte furtar-se ao pagamento de impostos sob a alegação de que sua atividade é ilícita. Casas de apostas mantidas por sociedades de corridas fora do local de sua sede. Serviço público é que tal não se considera."
Em 1980, o tema voltou à pauta do STF pelo recurso extraordinário 74.849-1-São Paulo. Tratava-se de nova execução fiscal movida, mais uma vez, pela Prefeitura Municipal de Santos contra o Jockey Club de S. Vicente. No entanto, neste caso, discutiu-se a cobrança do ISS sobre os bilhetes e, também, sobre a renda das apostas obtida pelos hipódromos.
À época, a Prefeitura Municipal de Santos cobrou ISS não sobre o bilhete de ingresso dos apostadores, mas sobre o resultado líquido das apostas, ou seja, a alíquota de 10% sobre 31% das apostas, percentual que remanescia com o Jockey Club de São Vicente, uma vez pagos os prêmios e as apostas vitoriosas.
O STF entendeu que a Municipalidade, ao tributar parte do produto das apostas sobre corridas de cavalos, invadiu a competência da União e, por esta razão, julgou "legítima a cobrança do ISS sobre os ingressos vendidos aos frequentadores dos hipódromos, porém, e ilegítima a pretensão do município de tributar a renda das apostas ou proventos das sociedades mantenedoras dos hipódromos, por ser tal da competência tributária da União."
No mesmo sentido, em julgamento recente em sede de Repercussão Geral, Tema 700, o STF julgou o recurso extraordinário 634.764 - Rio de Janeiro, sobre a cobrança de ISS pelo Município do Rio de Janeiro ao Jockey Club Brasileiro, onde se discutiu se a base de cálculo do tributo deveria incluir o valor integral da aposta ou recair apenas sobre o valor dos bilhetes ou ingressos ou ainda sobre outra base tributável.
O STF decidiu pela constitucionalidade da incidência do ISS tão somente sobre exploração de atividade de apostas, considerada a base de cálculo deve ser o valor a ser remunerado pela prestação do serviço, sendo inconstitucional a sua tributação sobre o valor total da aposta.
Assim, se por um lado, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a incidência de ISS sobre atividades de aposta é legítima, mas desde que não extrapole sua competência, ou seja, a base de cálculo deve se limitar ao valor dos ingressos. Por outro lado, o que se verifica, historicamente, é a tentativa incessante dos municípios se valerem da inércia da União, para tributarem o produto das apostas.
Atualmente, com o avanço tecnológico, as discussões sobre a tributação do acréscimo patrimonial migraram de casos concretos de corridas de cavalos realizadas fora dos hipódromos autorizados nos idos dos anos 50, para a tributação dos ganhos decorrentes das apostas realizadas fora do território físico, ou seja, no universo virtual/online.
É neste contexto econômico-tributário que, segundo o Ministério da Fazenda, a União finalmente irá lançar mão desta arrecadação, no entanto, não informou como se dará a tributação sobre as apostas virtuais.
Com efeito, a Constituição Federal prevê a competência normativa da União para instituir impostos residuais, nos arts. 153, inciso III, e 154, inciso I. No entanto, em discussões sobre o tema, os tributaristas têm apostado que o Governo irá mirar na tributação pelo Imposto de Renda dos apostadores, uma vez que muitas empresas de apostas virtuais sequer estão localizadas no Brasil e em sua grande maioria são residentes em paraísos fiscais.
Isso porque, nos termos do art. 43 do Código Tributário Nacional, o imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital. Neste contexto, o critério espacial do fato gerador do imposto de renda de pessoa física refere-se ao território nacional, incidindo sobre rendas ou provimentos auferidos por residentes e não-residentes no país e no exterior por pessoa residente e domiciliada no Brasil.
O dispositivo esclarece, ainda, que a incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
Além disso, o art. 14 da lei 4.506/64 determina que ficam sujeitos ao imposto de 30% (trinta por cento), mediante desconto na fonte pagadora, os lucros decorrentes de prêmios em dinheiro obtidos em loterias, mesmo as de finalidade assistencial, inclusive as exploradas diretamente pelo Estado, concursos desportivos em geral, compreendidos os de turfe e sorteios de qualquer espécie, exclusive os de antecipação nos títulos de capitalização e os de amortização e resgate das ações das sociedades anônimas.
Todavia, em análise de caso concreto, a Secretaria da Receita Federal do Brasil se manifestou, na Solução de Consulta 61 Cosit, de 29 de março de 2018, para determinar que os rendimentos recebidos do exterior por pessoa física residente no Brasil, decorrentes de ganhos em apostas on-line estão sujeitos à tributação sob a forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão), no mês do recebimento, calculado mediante utilização da tabela progressiva mensal vigente no mês do recebimento e recolhido até o último dia útil do mês subsequente ao do recebimento do rendimento, não havendo previsão legal para dedução, na apuração da base de cálculo do carnê-leão mensal, de eventuais perdas nas apostas realizadas; e deverão integrar a base de cálculo do imposto na Declaração de Ajuste Anual (DAA), sendo o imposto pago a título de carnê-leão considerado antecipação do apurado nessa declaração.
Assim, independentemente do avanço tecnológico ou do local de onde decorrem os acréscimos patrimoniais, estes, em regra, devem ser declarados e oferecidos à tributação, salvo disposição em contrário na legislação vigente.
Tanto é assim que a recente lei 14.115, de 22 de setembro de 2022, alterou a lei 13.752/18, para determinar que o produto da arrecadação da loteria de apostas de quota fixa em meio físico ou virtual, salvo disposição em lei específica, deve ser destinado ao pagamento do imposto de renda incidente sobre a premiação.
Na prática, independentemente da forma em que a União irá tributar estas ações, o grande desafio da Secretaria da Receita Federal do Brasil será exercer a fiscalização dos acréscimos patrimoniais advindos das apostas virtuais.
É inegável que, antes mesmo da criação de operações no Metaverso, verificou-se as dificuldades enfrentadas pelas autoridades fiscais para fiscalizar operações não declaradas pelos contribuintes enfrentando questões não só tecnológicas locais, mas também internacionais.
Nos termos do Relatório Anual de Fiscalização divulgado em 2022 pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, um dos focos de 2022 foi o desenvolvimento de novas ferramentas de identificação de sonegações tributárias, visando identificar ilícitos tributários estruturados, que se utilizam de práticas realizadas fora do território nacional, ou mesmo à margem do sistema financeiro nacional, com cruzamentos massivos para localizar contribuintes que possuem patrimônio localizados no exterior, e não declarados ao Fisco brasileiro.
Segundo a Secretaria da Receita Federal do Brasil, com base nos citados cruzamentos, a área de seleção de contribuintes identificou casos concretos em 2021 para fiscalização em 2022. Contudo, ainda que se identifique determinados contribuintes, certamente trata-se de número ínfimo perto dos milhares de apostadores residentes fiscais no Brasil que, atualmente, veem nas apostas um campo de acréscimo patrimonial livre da tributação.
De tal modo, não obstante os esforços da Secretaria da Receita Federal do Brasil, a tributação das apostas virtuais pretendida pelo Ministério da Fazenda, independentemente da forma em que ocorrer, enfrentará grandes obstáculos, precipuamente tecnológicos, na sua implementação e, principalmente, na sua fiscalização pelas autoridades fiscais.
Cristina Mancebo Câmara
Advogada graduada em Direito na Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito tributário. Mestranda em Direito Tributário na Universidade Cândido Mendes. Sócia do escritório SiqueiraCastro. Membro da Comissão Tributária da Câmara de Comércio França-Brasil e da Comissão Tributária da Associação Brasileira de Advogados - ABA.
Fonte: Migalhas