O governo Lula 3 tem dado prosseguimento à regulamentação das reformas realizadas desde 2016, a exemplo das ocorridas no setor de ferrovias e de jogos com apostas, embora esteja intensificando a intervenção estatal na economia, que gera obstáculos a ganhos de produtividade. Outras dificuldades nesse processo de regulamentação advêm da ausência de mais ações do Executivo, assim como do Legislativo e do Judiciário, de modo a concretizar os potenciais ganhos de crescimento para o país.
Neste artigo, sugerimos ações por parte dos Executivos estaduais e do Judiciário, para que haja regulamentação mais efetiva do mercado brasileiro de jogos com apostas, que movimenta aproximadamente R$ 220 bilhões, ou 2% do PIB, segundo estimativas a partir da Pesquisa de Orçamento Familiar (IBGE, 2017).
Desse montante, as apostas esportivas e jogos online movimentam uns R$ 120 bilhões, com o Banco Central já tendo rastreado metade disso. Não se trata, a propósito, de um dinheiro totalmente novo; estimamos que cerca de 80% desse montante já existia, sendo transacionados por meio de atividades ilegais.
O elevado volume salta aos olhos e causa desconfiança de que há diminuição de faturamento na mesma magnitude em outros setores por conta de relatos específicos de descontrole com apostas (casos de ludopatia). É preciso agilizar a regulamentação desse setor, tanto para elevar a fiscalização quanto para efetivar a implantação de jogo responsável, com vistas à moderação, como preconiza o catecismo da Igreja Católica (§ 2413).
Nesse sentido, dois entendimentos legislativos recentes chamaram atenção pelo potencial de ampliar a insegurança jurídica, inviabilizando o mercado ou impedindo que empresas e pessoas íntegras dele participem.
O primeiro passo para trás foi patrocinado pelo Executivo federal e aprovado pelo Congresso Nacional. Trata-se do artigo 35-A, § 2°, Lei 14.790/2023, que impede que uma empresa tenha licença de aposta esportiva em mais de um estado. Este entendimento é tão descabido que acreditamos até mesmo ferir a cláusula pétrea relativa à forma federativa de estado.
O segundo trata do entendimento de alguns prefeitos de que municípios podem operar loterias. Neste caso, há também honrosas exceções, como a do prefeito de Ribeirão Preto (SP), Duarte Nogueira (PSDB), que vetou o projeto de lei que autorizava a criação de um serviço público de loteria municipal, lembrando que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu apenas aos estados, e não aos municípios, explorarem esses serviços.
O correto entendimento do prefeito de Ribeirão Preto tem fundamento na tese vencedora que permitiu aos estados e ao Distrito Federal operarem loterias, decorrente das ações julgadas pelo STF, pautadas pelos estados, a partir de pedidos feitos pela Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE), autora da ADPF 493, e pelo estado do Rio de Janeiro na ADPF 492. Além disso, ingressaram como amici curiae diversos estados da federação.
Os defensores das loterias municipais argumentam, por outro lado, que é possível identificar evidências de que os municípios também foram contemplados com fundamento nos votos de alguns ministros, como Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Contudo, é preciso observar que tais manifestações foram apenas ditas de passagem (obiter dictum).
De fato, a discussão das aludidas ADPFs sequer tangenciou a questão municipal: dos 11 pareceres jurídicos juntados na inicial da ADPF 493, mais os 5 apresentados na ADPF 492, nenhum tratava sobre o tema dos municípios; dos amici curiae, nenhum era município ou organização representante destes.
A discussão caminhou pelos temas do federalismo, da igualdade entre entes federativos, da diferenciação entre competência legislativa e competência material na interpretação da Súmula Vinculante 2 e no instituto da competência residual, atinente aos estados e DF, do art. 25, §1º, da CRFB/88.
Ademais, o conceito de interesse local e preponderância desse interesse, próprios do art. 30 de nossa Carta Magna, não foram aventados por nenhum dos atores processuais, nem pelos ministros da corte. Em outras palavras, no dispositivo da decisão, o STF nada dispôs sobre a extensão do julgado aos entes municipais.
Destaque-se também que atualmente o STF “não” adere à chamada teoria da transcendência dos motivos determinantes, a qual sustenta que os efeitos vinculantes da decisão estariam relacionados não só ao dispositivo, mas também à parte da fundamentação dos votos dos ministros que influenciou a conclusão do julgamento. Dito de outro modo, conforme a jurisprudência do STF, não se pode extrair do julgamento das ADPFs 492 e 493 algo que não está esclarecido no dispositivo.
Vale lembrar, ainda, do teor do art. 32 do Decreto-Lei 204/67, que indica qual era o objeto da norma à época, restrita somente a questão envolvendo loterias estaduais: “mantida a situação atual […] não será permitida a criação de loterias estaduais”.
Não há, portanto, precedente do STF favorável à pretensão dos municípios que desejam instituir loteria própria.
Por fim, a hermenêutica do vigente ordenamento jurídico ensina que apenas lei complementar emanada do Congresso Nacional pode autorizar estado a permitir que os municípios neles circunscritos operem loteria, ao combinar o inciso XX e o § único do artigo 22 de nossa Carta Magna.
Diante do exposto, alertamos que é preciso que os Executivos estaduais se posicionem (em relação ao pleito de municípios que queiram operar loterias) por meio de interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade e que o STF decida, no intuito de que a regulação dos jogos com aposta seja efetivada no mercado brasileiro, a fim que não se esteja dando um passo para frente para depois dar dois para trás.
Alexandre Manoel
Economista-chefe da AZ Quest e ex-secretário nos Ministérios da Economia/Fazenda (2018-2020)
Roberto Brasil Fernandes
Advogado e autor do livro “Direito das Loterias no Brasil”